Epaminondas foi à guerra. Embarcou tenente e chegou à Itália como capitão. Foi promovido na viagem, durante a travessia do Atlântico, por absoluta falta de pessoal competente. Era artilheiro, conhecia canhões na medida dos treinos na Escola Militar de Realengo, o Real Engenho de época remota. Canhões do princípio do século vinte, velharias que mal funcionavam. Nada mais.

Desembarcou no porto de Nápoles, tiritando de frio, vestido com algodão fino, no meio do rigoroso inverno europeu. Em uma semana, recebeu agasalhos de lã felpuda, botas de couro forradas, noções de tiro, tática, estratégia e o comando de uma bateria de obuses novinhos em folha, que nunca havia visto, nem em livros. Sentiu-se acima dos mortais. Era um deus.

Os desgraçados da infantaria passavam à sua frente, maltrapilhos e maltratados, afundados até os joelhos na neve fofa, carregando mosquetões obsoletos e uma parafernália de traquitanas, com a missão de subir morros inexpugnáveis, guardados por tropas alemãs bem treinadas e protegidas. Epaminondas assestava os binóculos americanos e reclamava da inoperância dos soldados da ponta.

Pouco afeito aos recursos técnicos da época, levava algum tempo para interpretar as coordenadas enviadas pelo rádio. Daí, de vez em quando, um fogo amigo antes de acertar o alvo. Mas o que eram algumas vítimas aliadas, frente ao sagrado objetivo de derrotar o Eixo?

Os americanos de língua travada, o chamavam de ‘Epa, captain Epa’. Epaminondas era algo impronunciável para os sobrinhos do Tio Sam.  Gostavam dele, de seu porte longilíneo. Muito mais alto do que a média dos brasileiros, ele se misturava aos gringos com alguma desenvoltura. Falava um inglês aceitável, tinha presença. Contava piadas fáceis, debochava de seus patrícios, principalmente dos nordestinos que, independentemente do estado, eram tratados por ele como baianos. Todos eram baianos. ‘Os baianos não gostam de trabalhar. Acordam ao meio dia e vão dormir de novo às quatro da tarde. Duas horas depois, levantam e seguem pra farra. Estão na cama às duas da manhã e, assim, seguem na vida. Dois baianos conversam na rede: - ‘Meu bom, você sabe dizer se minha braguilha está aberta? Sei não, compadre. Ah, então vou deixar pra mijar amanhã’. São uns merdas, - shit, you know?’. Os americanos riam a bandeiras despregadas, eles achavam aquilo tudo o máximo. Epaminondas aposentou os cigarros ‘Caporal Amarelinho’ e passou a fumar ‘Marlboro’, acesos com o isqueiro ‘Zippo’ de pavio longo, que não negava fogo nas condições mais adversas. Sentia-se bem na guerra. Gostava da guerra. Considerava-se um yankee do sul. Estava mais feliz do que em casa, no bairro do Meier, no Rio de Janeiro.

Nos dias de paz, entre um ataque e outro, Epaminondas se bandeava para o vilarejo de Trosso, uma aldeia de não mais de quarenta casas, quase ao pé do monte Castelo. No princípio, aportava na taverna do Gianni, bebendo vinho barato, permutado pelos chocolates dos americanos. Depois, passou a trocar ideias por absinto, bebida pesada, capaz de alterar os sentidos nas doses mínimas. Uma dessas ideias foi o chuveiro, algo inimaginável para aquela turma de capiaus. ‘É simples: pegue uma lata gorda, um martelo e um prego. Fure o fundo da lata, uns vinte buraquinhos, amarre a lata no cano de água e pronto. Daí vem uma ducha. Maravilha moderna! Só tem mais uma coisica, um segredinho que não conto pra ninguém’. E ria-se da própria esperteza.

Cláudia, aldeã em busca de querosene, ouviu a descrição da oitava maravilha do mundo, e não parou de pensar naquilo. No dia seguinte, fez prontidão na taverna, até a chegada de Epaminondas. Foi direta: ‘quero o chuveiro.’.

Moça nova, de seios pequenos, coxas grossas, bunda arrebitada, tez alva, tinha beleza para seduzir o capitão. Virgem, apaixonara-se pela tecnologia de quitanda, a ponto de entregar a virtude. Para Epaminondas Gomes de Sá, bastava uma mulher, qualquer mulher. Cláudia, por exemplo!

A partir daquela noite, ‘the captain Epa’ sumiu da taverna e passou a frequentar a casa da família D’Ambrosio, comendo o guisado de ovelha da nona Martina, bebendo o bom vinho do patriarca, servindo-se da carne nova de Cláudia. Tudo em troca de um chuveiro, um mísero chuveiro de lata furada, com um segredinho especial. Foram dois ou três meses de furdunço, até que a guerra expirou, venceu, caducou.

Dizem que Epaminondas nem sequer se despediu. Saiu com um beijo ensaiado, como se fosse até a esquina comprar pão e nunca mais apareceu. Voltou para o Brasil, para o Meier, para a família brasileira. Encontrou uma filha que deixara encaminhada; uma mulher mais gorda e exigente; cunhados que não conhecia, e uma queima de fogos que lhe privou da audição de um ouvido.

Seguiu a carreira militar. Herói de guerra, ele recebeu todas as benesses do estado, condecorações, promoções, dinheiro a mais no contracheque. Viveu assim, durante mais quarenta e tantos anos, até chegar aos oitenta e poucos.

O general Epa gostava de fazer macarrão em casa. Farinha, água, ovos e muita sova. Batia a massa com vigor incompatível com a idade. Aprendera na Itália, nos tempos da guerra. Como? Todos perguntavam. No entanto, ele se esquivava. E o mistério da pasta continuou assim, sem receita. Ninguém queria supor, ninguém se aventurava a imaginar.

Uma noite, refestelado na famosa ‘cadeira do papai’, disposta à frente da televisão, o velho militar teve um infarto fulminante. Na tela, uma reportagem do Fantástico sobre um italiano que se chamava Epaminondas e procurava o pai, pracinha brasileiro, inventor do chuveiro.

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