Um amigo nosso, pós-60 como muitos da turma, resolveu aprontar mais uma das suas na semana passada. Teimou em desafiar o seu pulmão e encheu-o d'água. Mas o coração já cansado de tantas peripécias não entrou na brincadeira. Aí sobrou água no pulmão e, de quebra, um edema pulmonar agudo... Tudo bem que o troço é chique mas o susto é maior ainda. Agora está tudo bem, mas esses perrengues acabam por unir os pós-60.

Nós, os pós-60, somos solidários, é como entendêssemos que ninguém está nesse bonde porque quer. Ser pós-60 é fogo. Mas é bom. Temos a ilusão de que os pré-60 que gravitam ao nosso redor se sentem gratos pelos nossos ensinamentos mas, no fundo, talvez seja porque somos "meio" engraçados, já não temos tanto peso sobre os ombros, já sentimos um certo alívio por termos alguma história pessoal e isso tudo é refletido na nossa maneira de encarar a vida.

“Muitos de nós sucumbem, outros, mais atentos, aproveitam o lado bom da melancolia.”

A nossa turma sente muita saudade. Olhando pra trás é como se tivéssemos tido somente momentos bons. Os momentos difíceis se escondem em algum canto da memória e os bons, meio sem jeito, ficam sozinhos na ribalta. Ficamos ali à beira do precipício da nostalgia sem remédio, da melancolia sem antídoto. Muitos de nós sucumbem, outros, mais atentos, aproveitam o lado bom da melancolia. E por aí vamos.

Na música brasileira, os pós-60 dão um baile. Nossos contemporâneos são o máximo. Mesmo os pós-70 que, na verdade, são pós-60 com um selo de qualidade "premium", continuam firmes na ativa. Claro que estão mais contidos, mais seletivos, mais exigentes. Ninguém está a fim de desmerecer o que já fez de bom, por isso as criações, em número menor do que na juventude, são tão afiadas.

É muito comum ouvir ou mesmo ler nas famigeradas redes sociais afirmações do tipo "eles só foram criativos até o fim da ditadura", "a fonte secou e agora vivem das glórias passadas", "a qualidade da música brasileira está rolando morro abaixo", e outras sandices correlatas. Pode-se afirmar, com certeza, que daquelas gerações de ouro da música brasileira das décadas de 60 e 70 (os pós-60 pra frente) só não está na ativa, produzindo e ainda criando muita beleza, quem já foi para o outro mundo.

ÊH, ÊH - ALCIONE, DJAVAN E ZECA PAGODINHO

Um samba maravilhoso feito em 2014 pelos grandes Zeca Pagodinho (58, quase um pós-60) e Djavan (68) para a extraordinária Alcione (69), fez parte do set list do espetáculo "Eterna Alegria", um sucesso de crítica e público da Marrom. "Êh, Êh" é um samba em modo menor, difícil de cantar, desses sambas que exigem intérpretes de envergadura. E, no caso, os 3 conhecem profundamente a arte do canto, têm muito jogo de cintura, sabem tudo sobre como colocar a voz e modular mesmo nos tons mais baixos. Um primor.

TOMARA - VINÍCIUS DE MORAES, MARÍLIA MEDALHA E TOQUINHO

Vinícius de Moraes, o nosso saudoso "Poetinha", viveu apenas 67 anos. Partiu antes da hora em julho de 1980 deixando uma obra imensa da melhor poesia, de prosa generosa e de letras maravilhosas para músicas de grandes parceiros. Foi um ícone de seu tempo. Sua frase "meu tempo é quando" é uma verdadeira síntese de sua vida. Vinícius nunca se preocupou com idade. Viveu todas as fases de sua existência da forma mais intensa. O seu último grande parceiro foi Toquinho e os 9 de anos de parceria resultaram em grandes sambas que foram se eternizando no imaginário e no gosto popular. "Tomara" é uma dessas canções redondas, sem ter o que pôr ou tirar, é definitiva. Está presente no disco "E como dizia o Poeta...", de 1971. A dupla Vinícius e Toquinho contou com o reforço da força interpretativa de Marília Medalha, grande cantora que viveu e abrilhantou muitos dos famosos festivais de música brasileira das décadas de 60 e 70. Vinícius ainda estava com 58 anos à época da gravação, mas a sua sabedoria transformou-o em um guia para os jovens da época e de muitas gerações subsequentes.

CORAÇÃO IMPRUDENTE - PAULINHO DA VIOLA

Esta gravação de "Coração Imprudente" fez parte do Acústico MTV de Paulinho da Viola (74), em 2007. O Príncipe, cada vez mais experiente e dono de uma técnica impecável, tinha 64 anos à época da apresentação. Chorinho sofisticado e elegante, um dos melhores de sua vasta produção, tem uma letra sensacional que me fez lembrar de meu amigo, o desafiador de pulmões, citado no início deste texto. Ele, como tantos outros da nossa geração, fez gato e sapato de seu próprio coração e, por vezes, levou o troco do Músculo-Rei, chefe do tráfego de sangue no nosso corpo. Imprudentes demais, meu amigo e seu coração, levam a vida com uma trilha sonora de grandes canções. Ainda bem.

CHORO BANDIDO - CHICO BUARQUE E EDU LOBO

"Choro Bandido" nasceu clássica. Composta em 1985 por uma das parcerias mais profícuas da música popular, a dos fenomenais Chico Buarque (72) e Edu Lobo (73), aos poucos foi galgando os degraus da compreensão para se firmar na constelação maior das grandes canções brasileiras. A gravação mostrada aqui é do espetáculo "Edu Lobo 70 anos", realizado no Theatro Municipal do Rio de Janeiro, em 29 de agosto de 2013. Canção difícil, cheia de "armadilhas e alçapões", é defendida por dois senhores intérpretes, serenos, seguros e cientes da pérola rara que criaram. Vale a pena ouvir muitas vezes para descobrir os segredos que música e letra encerram. Um grande momento!

MÁQUINA DE RITMO - GILBERTO GIL

Gilberto Gil (74) é um Mestre: grande músico, extraordinário letrista, band leader dos mais performáticos, pensador em horário integral, conhecedor profundo de todas as vertentes da música brasileira. Mago das referências, não há assunto que não esteja em pelo menos uma de suas 500 e tantas canções. Não há gênero musical que o baiano não tenha lançado mão. Gil é tão completo que acabou sendo um guru para muitos da minha geração. Quem entendeu a significância de sua obra tem por ele um sentimento profundo de gratidão.

"Máquina de Ritmo" é uma obra-prima, uma canção sobre a finitude da vida e, portanto, muito adequada para as reflexões diárias dos pós-60. Gil utiliza como referência essas geringonças que fazem qualquer tipo de som, as máquinas digitais de ritmo, para exemplificar a substituição inexorável dos meios disponíveis para o nosso bem estar e interação com o mundo. Nós, os pós-60, vivemos um tempo de profundas mudanças. Poucas gerações tiveram acesso a tantas reviravoltas em um período de tempo tão curto. Vimos o alvorecer das tecnologias digitais, o surgimento da Internet, a criação da telefonia móvel, a evolução dos computadores pessoais, e tantas outras. A letra quilométrica da canção fala da aposentadoria dos instrumentos clássicos de percussão e a progressiva substituição dos mesmos pelas estrovengas digitais. Uma metáfora. Mas como a vida é um eterno vai-e-vem, provavelmente a máquina de ritmo também venha a ser substituída um dia e, quem sabe, não o seja pelos antigos surdos e tamborins do "museu do carnaval"? Seria uma volta ao som tribal? A simplificação completa e final? A iluminação definitiva? Questões que Gil propõe do seu jeito baiano, matreiro, sugerindo, mais do que afirmando ou propondo, um convite ao pensamento.

Esta gravação foi feita no Theatro Municipal do Rio de Janeiro, em maio de 2012, para o lançamento do DVD "Concerto de Cordas e Máquinas de Ritmo", um encontro estimulante entre a modernidade e a tradição. Jaques Morelenbaum (62) criou a maioria dos primorosos arranjos e faz a regência da Orquestra Petrobrás Sinfônica no espetáculo.

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