POESIA: Arte de compor através de versos; modo de expressão artística caracterizada pelo uso de regras, de sons ou de estruturas sintáticas específicas.

Muita gente não considera as letras de músicas como poesia. A levar-se em conta a definição de poesia acima, as letras poderiam, sim, ser consideradas como tal. Tanto a poesia clássica como a poesia moderna podem ter qualidade ou não. Segundo critérios que têm muito de conhecimento literário e também de subjetividade, a poesia pode ser boa ou ruim. As letras também.

A música brasileira contemporânea tem seu início com o advento da bossa nova. As letras até então tinham temáticas que não fugiam muito de três principais características: versavam sobre o amor (ou a falta dele), sobre o período histórico (sobretudo no carnaval) ou eram crônicas sobre o dia-a-dia das pessoas das cidades ou do campo.

“Muitos afirmavam que Vinícius de Morais era o pioneiro das letras mais “poéticas”, mais parecidas com o que se definia como poesia”

Embora o período pré-bossa nova tenha inúmeros exemplos de letras de qualidade literária como "Chão de Estrelas" e as canções praieiras de Dorival Caymmi, por exemplo, muitos afirmavam que Vinícius de Morais era o pioneiro das letras mais "poéticas", mais parecidas com o que se definia como poesia, talvez pelo fato dele já ser um poeta consagrado que havia enveredado pelo mundo musical e, com isso, conferido mais "nobreza" ao ato de compor letras da canção popular. Do outro lado, houve muita gente que torceu o nariz quando ele "mudou de turma".

“O aprofundamento das temáticas na dita MPB (...) também gerou um punhado de letras parcialmente ou totalmente incompreensíveis”

O fato é que os festivais de música popular da segunda parte dos anos 60 do século passado, o recrudescimento da ditadura militar no final de 1968 e o consequente surgimento do simbolismo na canção política (não era mais possível protestar contra o regime às claras), e o advento da Tropicália com suas letras sofisticadas plenas de imagens também simbólicas, alegóricas e oníricas, inusitadas até então, alçaram a letra da canção popular a um outro patamar.

O aprofundamento das temáticas na dita MPB, termo originário do início da década de 70, também gerou um punhado de letras parcialmente ou totalmente "incompreensíveis". Esta edição de "Música nas Entrelinhas" vai mostrar algumas delas. Preparemos então os nossos instintos detetivescos para tentar desvendá-las.

ÉBANO - LUIZ MELODIA

Carioca do Morro do Estácio, o grande Luiz Melodia sempre foi um exímio compositor de letras duras de entender. O samba soul "Ébano" do início da carreira é uma dessas pérolas, cujo trecho reproduzido abaixo é da estrofe final da canção. Eu vinha entendendo "mais ou menos" até o verso "eu, nós três manchando" mas aí desisti...

“Do Rio de Janeiro, estou te sacando / do centro da cidade vou te assemelhando / no núcleo do teu crânio / eu, nós três manchando / quem é quem te amando / quem sou eu passando / quem sou eu ficando nú”.

MISTÉRIO DO PLANETA - NOVOS BAIANOS

"Mistério do Planeta" é do extraordinário disco "Acabou Chorare" dos Novos Baianos, gravado em 1972, um supra sumo do samba e do rock que, de tão amalgamados, deram origem ao "pop" brasileiro. A música é de Moraes Moreira e a letra maluquíssima é de Galvão, o poeta do grupo. Entende-se bem o que Galvão quis dizer mas é necessário muita atenção e várias leituras. No entanto, muita coisa fica para trás como, por exemplo, o "tríplice mistério do 'stop'". Que Galvão nos ajude já que somos meros mortais...

“O tríplice mistério do ‘stop’ / que eu passo por e sendo ele / no que fica em cada um / no que sigo meu caminho / e no ar que fez e assistiu / abra um parênteses / não esqueça, que independente disso / eu não passo de um malandro / de um moleque do Brasil / que peço e dou esmolas / mas ando e penso sempre com mais de um / por isso ninguém vê minha sacola”.

AVÔHAI - ZÉ RAMALHO

O paraibano de Brejo da Cruz, Zé Ramalho, é um dos compositores da música popular brasileira contemporânea mais alegóricos. Suas letras são recheadas de imagens que só os "iniciados" conseguem seguir as pistas. A canção "Avôhai" foi composta para o avô e está em seu primeiro disco comercial, lançado em 1978. Uma pista boa é que amanita é um cogumelo. Ajuda, não?

"Neblina turva e brilhante em meu cérebro, coágulos de sol / Amanita matutina e que transparente cortina ao meu redor / Se eu disser que é meio sabido você diz que é meio pior / É pior do que planeta quando perde o girassol / É o terço de brilhante nos dedos de minha avó / E nunca mais eu tive medo da porteira / Nem também da companheira que nunca dormia só / Avôhai".

CRENDICE - CARLINHOS BROWN

Carlinhos Brown é uma figuraça. Começou nascendo em uma cidade do sudoeste da Bahia chamada Carinhanha: o fato já não dá uma frase de percussão? Ca-ri-nha-nha!! As letras das suas canções são assim, como frases de percussão. Tudo tem uma lógica, diz Carlinhos Brown na suingada "Crendice". Pois é, estou tentando descobri-la...

“Venha me dar amor / me dar o teu calor / te quero in my way / isso é um mar de fé / no zap pele / no sap filme / tudo tem uma lógica / chaminé minério”.

OUTRAS PALAVRAS - CAETANO VELOSO

Caetano Veloso sempre nos surpreendeu. Antenado no futuro, dissecando o presente e mergulhando no passado, nunca foi fácil segui-lo. Suas letras já falaram de tudo. Cultor da língua portuguesa, na canção "Outras Palavras", gravada em seu disco homônimo de 1981, Caetano vai lançando frases soltas que podem ser combinadas umas às outras sem necessidade de ordem aparente. Na última estrofe ele resolve criar palavras: um bom exercício para detetives novos e antigos. Esta é para ganhar o diploma de conclusão do curso...

“Parafins gatins alphaluz sexonhei da guerrapaz / ouraxé palávoras driz okê cris expacial / projeitinho imanso ciumortevida vidavid / lambetelho frúturo orgasmaravalha-me Logun / Homenina nel paraís de felicidadania: outras palavras”.

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