Caro leitor e cara leitora, cá entre nós e sem que ninguém nos ouça, quantas vezes não nos arriscamos a soltar a voz em algo parecido com o inglês, seja embaixo do chuveiro, no antigo karaokê caseiro, dentro do carro ou cantando em “dueto” com o sucesso do momento? Se todos nós tentamos, amadores constrangedoramente desafinados, é natural que em todo país do mundo haja cantores ou cantoras que cantem em inglês, afinal essa é a língua “oficial” do planeta e da música pop internacional.

Mas o que talvez muita gente não saiba é que tem muitos estrangeiros e estrangeiras cantando em português. A qualidade e a diversidade da música brasileira passaram a ser um chamariz e um desafio para cantores, cantoras e músicos de todo o mundo, principalmente após a invasão da bossa nova nos Estados Unidos, na Europa e no Japão, em meados do século passado. Por paradoxal que pareça, a música brasileira e seus grandes artistas são, muitas vezes, mais cultuados fora do Brasil do que na sua própria terra. É uma pena que seja assim mas, por outro lado, é gratificante perceber que temos um excelente produto de exportação, que interessa a muita gente de diferentes países, etnias e culturas musicais.

“É preferível ouvir cantoras estrangeiras apanhando um pouco em português do que ouvi-las cantar em inglês estultices do tipo ‘Boy from Ipanema’ ou ‘He’s Carioca’ ”

O onipresente e inigualável Antonio Carlos Jobim é, claro, o compositor brasileiro mais gravado no exterior. São incontáveis as gravações de "Garota de Ipanema", “Água de Beber”, “Águas de Março”, “Só Danço Samba”, "Samba de uma Nota Só", "Triste", "Samba do Avião", "Caminhos Cruzados" e tantas outras. Mas temos outros "vice-campeões" de gravações no exterior: Ary Barroso, Dorival Caymmi, Luiz Bonfá, Milton Nascimento, Ivan Lins, Marcos Valle, Edu Lobo, Jorge Ben Jor são alguns dos muitos nomes que estão no "caderninho" das grandes cantoras de jazz, da world music e do pop mais sofisticado.

Quando as canções são mais lentas ou assemelham-se a baladas, é mais fácil o encaixe na "embocadura" dos intérpretes dos outros países. Mas as dificuldades da língua portuguesa, as divisões cheias de truques nas canções, quando se requer um certo balanço ou suingue para cantá-las, a coisa complica para os estrangeiros a tal ponto que boas doses de um humor involuntário serem comuns em suas performances. Mas é muito saudável que grandes cantores e cantoras continuem se aventurando em português e que esse contrafluxo possa continuar existindo. Isso faz um bem danado ao nosso ego.

De toda a forma, é preferível ouvir cantoras estrangeiras apanhando um pouco em português do que ouvi-las cantar em inglês estultices do tipo “Boy from Ipanema” ou “He’s Carioca”. Vinícius, lá no Céu, deve pedir outras doses de seu uísque preferido toda vez que escuta essas aberrantes versões “in english”.

CRAVO E CANELA - JOSEE KONING (part. especial: DORI CAYMMI)

A cantora holandesa Josee Koning tem um verdadeiro caso de amor com a música brasileira. Após os anos de estudo no Conservatório de Amsterdam, aprofundou-se em música e cultura brasileira e passou, desde então, a viajar freqüentemente ao Brasil. O seu primeiro disco solo (1995) foi totalmente dedicado a Tom Jobim e cantado em português. O segundo disco, “Dois Mundos”, gravado em 1998, tem canções de Ivan Lins, Sérgio Mendes, Caetano Veloso, Chico Buarque e Milton Nascimento, entre outros. "Cravo e Canela", de Milton Nascimento e Ronaldo Bastos, é desse disco. Josee gravou mais 5 discos, sendo que somente em um deles há canções holandesas. Prova de amor mais explícita pela nossa música não há.

AMANDO DEMAIS - STACEY KENT E MARCOS VALLE 

Nascida em South Orange, Nova Jersey, EUA, Stacey Kent gravou sem primeiro álbum em novembro de 1996 e desde então vem construindo uma sólida carreira de cantora de jazz com algumas incursões bem vindas no pop mais refinado. Sua paixão pela música brasileira aparece pela primeira vez no álbum "The Lyric" gravado pelo saxofonista Jim Tomlinson, seu marido, em 2006, onde Stacey canta "Manhã de Carnaval", "Corcovado" e 'Outra Vez". A partir daí seus discos sempre contaram com canções brasileiras interpretadas em inglês e em português. Essa forte ligação com a nossa música foi consolidada no álbum feito com Marcos Valle em 2013. "Amando Demais" é uma autêntica bossa nova apresentada ao vivo no lendário clube de jazz "Birdland" em Nova York, em 2016.

RETRATO EM BRANCO E PRETO - VIRGINIE TEYCHENÉ 

A francesa Virginie Teychené nasceu em Draguignan em 1972. É uma das mais aclamadas cantoras de jazz da Europa e esse reconhecimento vem desde o lançamento de seu primeiro disco, "Portraits" (2007). O primeiro álbum já continha duas canções brasileiras de Tom Jobim, "Double Rainbow" ("Chovendo na Roseira") e "Zingaro" ("Retrato em Preto e Branco"), esta última cantada lindamente em um português sem sotaque. É a canção apresentada nesta coluna em uma apresentação ao vivo.

Virginie gravou música brasileira em todos os seus discos posteriores, incluindo canções clássicas porém incomuns na voz de cantoras estrangeiras de jazz, como as brasileiríssimas "Prá que discutir com madame" e "Doralice". É prá se apaixonar ou não?

O CANTADOR - KATE McGARRY (part. especial: KURT ELLING)

As cantoras de jazz apaixonam-se pela música brasileira principalmente por conta dessa maravilhosa associação de melodia, harmonia e ritmo que é característica das nossas canções. Quem sabe cantar adora esses desafios. A ótima Kate McGarry, americana de Hyannis Port, Massachusetts, 46 anos, assumiu o risco desde o seu primeiro disco. Gravou canções brasileiras em 6 de seus 7 álbuns muito elogiados pela crítica especializada. "O Cantador", clássico de Dori Caymmi e Nelson Motta, está presente em "Girl Talk", disco de 2012. É uma bela regravação.

MANHÃ DE CARNAVAL - SUMI JO

A soprano sul coreana, Sumi Jo (Jo Sugyeong, 54), nascida em Seul, é uma premiadíssima "diva" da música lírica mundial. Neste registro, Sumi canta brilhantemente o clássico "Manhã de Carnaval", de Luiz Bonfá e Antonio Maria, um dos temas brasileiros mais cultuados pelas cantoras de jazz. Não consegui identificar qual o disco de Sumi Jo que contém a gravação mas, sem embargo, vale muito a pena escutá-la. Juro que ela está cantando em português apesar do pouco traquejo que Sumi tem com a nossa língua. Voz e arranjo, no entanto, são maravilhosos.

BOLERO DO PARECER - BARBARA CASINI

Cantora, compositora, violonista, atriz e escritora, Barbara Casini nasceu em Florença, em 1954. Tinha 15 anos quando conheceu e apaixonou-se pela Bossa Nova. Graduou-se em psicologia na tradicionalíssima Universidade de Pádua mas logo optou pela estrada da música. Depois da primeira viagem ao Brasil, em 1982, a opção pela arte de cantar tornou-se irreversível. Sua formação musical foi ganhando corpo ao participar de grupos de grandes músicos italianos de jazz. E então, anos depois, começou a gravar seus álbuns. Quase todos eles têm canções brasileiras dos mais diversos compositores, um amplo leque que vai de Arrigo Barnabé a Pingarilho, de Toninho Horta a Guinga.

Barbara Casini também compõe em português. "Bolero do Parecer" é uma dessas canções autorais e está inclusa no excelente álbum "Vento", de 2000, que conta com músicos do naipe de Enrico Rava ao trumpete e Stefano Bollani ao piano, e arranjos orquestrais de Paolo Silvestre para a Accademia Filarmonica dessa Scalla.

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