Com o passar do tempo, as lembranças crescem demais. Então, seus galhos compridos começam a bater na janela da memória intermitentemente, e a intrometer-se sem cerimônia nos nossos sonhos e reflexões. Eu sei que, neste caso, a providência indicada é a poda, mas sempre reluto e vou protelando o momento grave de meter a tesoura nas reminiscências. É o que acontece agora.

Há dias venho sonhando seguidamente com meu pai e, mesmo acordado, o pensamento voa na direção da boa saudade do velho. Saudade do perfume de sua loção pós-barba, do sabor do pão que ele tostava direto na chama, do toque sedoso de suas mãos gentis, do abraço generoso, do beijo que me umedecia a face e me aquecia por dentro. Sem qualquer esforço, posso ver seu rosto moreno, o sorriso meio tímido, meio sonso, e o olhar de intenso mistério. Havia uma tristeza insondável naquele olhar, do mesmo jeito que transmitia uma inocência quase pueril.

Era um homem bonito. Bonito e elegante. Os ternos, por mais baratos que fossem, caiam-lhe muito bem, como se houvessem sido cortados à mão. Os sapatos, sempre engraxados com esmero, brilhavam como espelhos. O cabelo era meticulosamente penteado, a barba escanhoada e o seu tom azulado permaneciam até o fim dia. Meu velho era vaidoso quanto à aparência, mas orgulhava-se muito mais do saber que amealhara como autodidata. Segundo um amigo meu, tudo o que o autodidata sabe é que nada sabe. Por isso, a fome de saber.

Sem ter o primário completo, meu pai era um homem culto. Leitor compulsivo, quando se interessava por algo esgotava todas as fontes até dominar completamente o assunto. Foi assim que se tornou íntimo dos grandes escritores, dos grandes cientistas, dos grandes filósofos, dos grandes compositores. Dentre os muitos livros que se revezavam em sua cabeceira, um era fixo: o Pequeno Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Não admitia dormir sem conhecer, ao menos, uma nova palavra.

Também gostava muito de cantar. Sozinho, sem plateia, enquanto manejava o aparelho de barbear, vestia-se ou se penteava. Suas preferências eram a aria ‘La donna é mobile’, da ópera ‘Rigoletto’, de Giuseppe Verdi, e ‘Che gelida manina’, de ‘La Bohéme’, suprema criação de Puccini. Sem conhecer o idioma, seu italiano soava ‘perfetto’. Nas manhãs de domingo, invariavelmente, acordávamos com seus recitais.

Fumava como a chaminé de uma antiga locomotiva. Não fazia questão da qualidade do fumo. Escolhia pela marca, ou melhor, pelo nome na embalagem, no maço. Durante anos a fio, tragou os cigarros ‘Lincoln’, em homenagem ao 16º presidente dos Estados Unidos, seu ídolo maior. Depois, foram os ‘Luxor’, por causa da cidadela egípcia dos faraós e múmias.

Bento Gregorio tinha suas convicções e não costumava se afastar delas facilmente. No entanto, não era inflexível. Até 1960, torceu pelo América do Rio e, mesmo com o clube campeão naquele ano, decidiu mudar sua preferência para o Botafogo. Simplesmente, alegou que seu tempo no América havia terminado, “pois tudo na vida é cíclico”.

Era Rosacruz praticante, dissertava com maestria sobre o ‘Conceito do Cosmos’, de Max Heindel, entre outras obras de cunho esotérico. Uma ocasião, eu e meu irmão duelávamos sobre as teorias de Madame Blavatsky, teósofa russa, inflamados pelo fogo da juventude, quando, de repente, a voz de meu pai soou morna e densa, alguns decibéis abaixo. O tempo parou naquela sala discreta, enquanto uma deliciosa calma invadiu nossas almas. O que ele disse foi tão lindo, tão extraordinário, que não posso reproduzir, nem meu irmão, sob o risco de cometermos um sacrilégio. Várias vezes, discutimos sobre o assunto e chegamos à mesma conclusão: foi um momento de Graça!

O ciclo de meu pai expirou há mais de trinta anos. Mas, até hoje, ele mora comigo. Aqui, no melhor lugar do meu coração. Um belo espanhol, de pensamento límpido, princípios inabaláveis e um grande amor pela vida. Acho que vou esperar mais um tempinho para fazer a poda das minhas lembranças.

Foto especial Credito: Arquivo pessoal

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