As argentinas Adriana Garnier Ortolani, 40 anos, e Blanca Díaz de Garnier, 86 anos, não se conheciam. Estavam separadas por 300 quilômetros, entre Buenos Aires e Concepción del Uruguay. Mais do que isso, entre avó e neta havia uma distância de 40 anos – e que terminou no fim do ano passado, quando as duas se conheceram, graças à busca incessante das Avós da Praça de Maio.

A história das duas tornou-se a alma da campanha lançada neste mês pela associação. Batizada de “O Abraço Adiado”, mostra o encontro tardio de Blanca e Adriana, que nasceu em cativeiro, quando a mãe estava presa, em 1977. O pai também foi capturado pela ditadura argentina, e os dois nunca mais apareceram.

Com mais de 40 anos, a organização não governamental Associação Civil Avós da Praça de Maio tem uma missão: encontrar centenas de crianças que nasceram em cativeiro durante a ditadura argentina, instaurada em março de 1976. Cerca de 30 mil pessoas foram presas e torturadas, inclusive mulheres grávidas. E parte delas deu à luz no cárcere.

Nos centros de detenção clandestinos do governo, foram montadas maternidades e organizadas listas de espera para a adoção dos bebês. As crianças eram vendidas, abandonadas, deixadas em orfanatos ou levadas para famílias das forças de repressão. Muitas nunca souberam que haviam sido adotadas – nem que havia uma família a sua espera por décadas. Os pais e as mães biológicos nunca retornaram, vivos ou mortos, às suas famílias.

“O Brasil foi um dos primeiros países que nos estendeu a mão, ajudou e protegeu”

Aos poucos, essas avós, que haviam sido alijadas de uma parte da maternidade e da vida de seus netos, se organizaram para encontrá-los. Tornaram-se detetives, recolhiam denúncias, batiam à porta de tribunais, analisavam adoções do período, conscientizavam a população.


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“O Brasil foi um dos primeiros países que nos estendeu a mão, ajudou e protegeu”, recorda a presidente da associação, Estela B. de Carlotto, em entrevista ao portal do Instituto de Longevidade Mongeral Aegon. Contaram com o auxílio da Clamor (Comitê de Defesa dos Direitos Humanos para os Países do Cone Sul), extinta em 1991, e com o apoio do arcebispo de São Paulo, Dom Paulo Evaristo Arns (1921-2016), um dos organizadores do grupo Tortura Nunca Mais, num período em que também os brasileiros eram vítimas de um regime autoritário e violento.

Conquistas

As avós também criaram um banco de dados genéticos, quando ainda não se ouvia falar de DNA. Elaboraram um projeto de lei, cuja regulamentação foi sancionada em 1989, e que hoje é um dos recursos mais preciosos para identificar as crianças desaparecidas de então. “Foi nosso maior êxito”, destaca.

 “Continuamos procurando, inclusive as [crianças de avós] que já se foram e que não puderam abraçar seus netos.”

Mas esse não é nem de longe o único mérito das Avós da Praça de Maio. Com esse trabalho conjunto, elas conseguiram encontrar 127 homens e mulheres que foram roubados no nascimento e cujos pais foram vítimas de assassinato ou tortura. “Faltam muitíssimos mais”, diz Estela. “Continuamos procurando, inclusive as [crianças de avós] que já se foram e que não puderam abraçar seus netos.”

avos da praca de maio abraco Adriana Garnier Ortolani e a avó paterna Blanca Díaz de Garnier; crédito: Divulgação

Estima-se que 500 bebês tenham essa trajetória de cárcere e abandono ou adoção. Como muitos não sabem que foram criados por pais não biológicos, o banco genético tornou-se um recurso para que pessoas que tiveram suas identidades roubadas tenham acesso às suas histórias familiares.

Foram montadas ainda equipes jurídicas, para punir os responsáveis pelos desaparecimentos de pais e filhos e para o registro dessas crianças; psicológica, para dar atendimento às famílias; e de comunicação, para divulgar campanhas e encontrar outros netos e para conscientizar a população sobre o trabalho desenvolvido pela organização. “A maior resposta [do sucesso das avós] é encontrar um neto com 30 anos de vida.”

 “[Avó] é a que pensa nos sonhos e não nas responsabilidades”

As conquistas, no entanto, não escondem a dor dessas mulheres, que aparece nas sutilezas das respostas. “Essa é a idade mais doce para compartilhar com as crianças”, diz Estela. “Ser avó é ser consentidora, protetora, carinhosa, afetiva e com tempo para dedicar aos netos”, destaca ela, para quem a “avó é a que pensa nos sonhos e não nas responsabilidades dos netos”.

Encontrá-los também pode significar rejeição, já que muitos foram criados por pessoas ligadas à ditadura. Reconhecer as figuras materna e paterna como, no mínimo, contraventores, é um passo enorme para alguns. “Não buscamos os netos para dizer o que tem de fazer. Temos muita demonstração de amor e compreensão.”

Entre as décadas que separam avós e netos e o imprevisível desfecho da busca, elas se mantêm firmes. “Não há nenhum desânimo, há luta, força e dor, mas não desesperança.” E finaliza: “A alegria de encontrar os filhos e os netos nos dá força para seguir”.

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