Passava um pouco das onze horas da manhã, quando o carrasco Jerônimo Capitânia saltou do patíbulo sobre os ombros de Tiradentes para quebrar-lhe o pescoço e, assim, abreviar sua agonia. Promessa feita ainda no cárcere. Era o dia 21 de abril do ano de 1792, um sábado. O lugar, o Largo da Forca da rua do Sacramento, é hoje a esquina da rua Senhor dos Passos com a avenida Passos, no centro da cidade do Rio de Janeiro.

Joaquim José da Silva Xavier, vulgo Tiradentes, não foi o super herói de almanaque que a maioria imagina, muito menos o tolo bode expiatório que alguns pretendem configurar. Na verdade, pegou uma carona na proclamação da República para se tornar um dos maiores vultos da história da pátria amada, cantado em louvores e tido como quase um santo. Mas, vamos por partes - sem nenhuma alusão ao esquartejamento que aconteceu após a execução.

Para começar, Tiradentes não era pobre. Pelo contrário, tinha berço e grana. Filho de pai português e mãe brasileira, nasceu na fazenda Pombal, pertencente à sua família. Um pedaço de terra para ninguém botar defeito, localizado onde hoje está o distrito de Ritópolis, em São João del Rei, Minas Gerais. A sede da propriedade possuía dois pavimentos, oratório particular e senzalas para os 35 escravos que trabalhavam na mineração, um dos negócios do pai, Domingos da Silva Santos. Dois dos irmãos de Tiradentes seguiram a carreira religiosa, oportunidade dada a pessoas de nível social e econômico acima do médio. Por tudo isso, pode-se ter a certeza de que o inconfidente não era um pé-rapado.

Batizado em 12 de novembro de 1746 na Freguesia de São Sebastião do Rio Abaixo, o menino Joaquim ficou órfão de mãe aos nove anos, ocasião em que recebeu quase um conto de réis de herança, quantia de encher os olhos e bolsos de qualquer um, na época. Alguns anos mais tarde, perdeu o pai e assumiu a fazenda. Trabalhou ali até os 20 anos, quando comprou escravos, mulas e tornou-se tropeiro. Aprendeu o ofício de cirurgião-dentista com o tio e padrinho, Sebastião Ferreira Leitão, e as qualidades curativas das plantas medicinais com o primo, frei José Mariano Velloso, que seria, mais tarde, um dos principais botânicos do país.

Dono de mais de 40 lavras de ouro e pedras preciosas, Tiradentes estava sempre insatisfeito com o que possuía. Assim, quando o Regimento de Cavalaria de Minas Gerais foi criado, alistou-se imediatamente. Recebeu o posto de alferes, o mesmo que segundo-tenente, hoje em dia. Sua missão foi construir estradas, patrulhá-las para evitar o contrabando e fornecer informações sobre as melhores fontes de extração mineral. Nesse mister, provou ser muito competente, credencial que o aproximou dos ricos contratadores e outros negociantes, donos das maiores fortunas daquelas plagas e, não por acaso, devedores da Coroa portuguesa.

Sem condições de quitar os impostos, eles estavam prestes a perder todos os bens com a decretação da Derrama, um dispositivo fiscal aplicado em Minas Gerais, a fim de assegurar o teto de cem arrobas de ouro anuais na arrecadação do quinto. O quinto, o famoso ‘quinto dos infernos’, era a retenção de 20% de todo o ouro extraído na região, que eram enviados ao Governo de Portugal. Desesperados, os inadimplentes pensaram numa única saída: a revolta pela emancipação de Minas.

Já não é preciso dizer que o nosso Xavier era um autodidata e aventureiro. Movido pela sede de conhecimento, aprendeu a ler o latim, o francês e o inglês, com a ajuda de quem quisesse e se dispusesse a ensiná-lo, inclusive de um dos filhos da lendária escrava Chica da Silva. Assim, apaixonou-se pela constituição dos Estados Unidos da América, promulgada em 1787, e pelos ideais libertários.

Por outro lado, Joaquim José também não desprezava os prazeres mundanos. Aliás, eram os seus preferidos. Gostava e abusava da cachaça, da ‘marvada’, da ‘criatura’, e não resistia a uma taverna. Sem precisar de mapa, conhecia a fundo todos os puteiros, de Minas ao Rio de Janeiro. Neles, tinha relações estáveis com algumas moças, e alguns filhos e filhas, que se juntavam à prole fora dos bordéis. Segundo algumas testemunhas, o alferes Xavier não dispensava um rabo de saia.

Feio, rude, sem jeito, Tiradentes usava bigode à francesa, aquele que desce pelos cantos da boca até quase o queixo. O resto do rosto era escanhoado com navalha, liso como ditava a moda. Sem freios na língua, fazia comícios contra Portugal e pela independência em qualquer lugar, replicando as ideias de seus pares revolucionários. Sem mudar o comportamento, apesar de advertido pelos líderes do movimento, saiu de Ouro Preto para o Rio, pousando em cada boteco, em cada lupanar. De parada em parada, um discurso regado à pinga, uma inconfidência. Não sabia que o ideal revolucionário já fora traído por Joaquim Silvério dos Reis e por outros parceiros que a história fez questão de absolver ou omitir.  Foi preso na noite de 10 de maio de 1889, numa casa na rua dos Latoeiros, atual Gonçalves Dias, no centro da cidade do Rio. Sem esboçar resistência, apesar de ter uma pistola na mão, um punhal e uma espada.

Àquela altura, quase todos os trinta e tantos adeptos da República de Minas já haviam sido identificados e muitos deles presos. Tiradentes foi conduzido à Cadeia Velha, onde hoje se ergue o magnífico prédio da Câmara dos Deputados do Estado do Rio. Interrogado, prestou onze depoimentos, negando sempre qualquer envolvimento no golpe. No entanto, ao fim dos dois anos que se seguiram, uma radical transformação aconteceu: Tiradentes não só confessou ter participado da trama, como também assumiu toda a responsabilidade pela traição. Num estalar de dedos, passou de coadjuvante a protagonista.

Dona Maria I, rainha de Portugal, não o poupou. Foi condenado à morte na forca, com esquartejamento subsequente. Amaldiçoado para sempre, bem como seus descendentes, teria suas propriedades queimadas, o chão salgado e proibido de receber quaisquer construções futuras.

No dia 21 de abril de 1792, o trajeto da Cadeia Velha ao Largo da Forca durou quase três horas. Em cada esquina, o cortejo parava para que o arauto lesse a sentença. Formado por centenas de pessoas, o séquito se deteve em frente à igreja de Nossa Senhora da Lampadosa onde, ajoelhado nos degraus da entrada, Tiradentes foi absolvido, segundo a doutrina católica. Para quem ainda acredita na figura de barba e cabelos longos, metida num camisolão, semelhante à imagem de Jesus Cristo, uma decepção: Joaquim José da Silva Xavier vestia bata e calças de algodão e tinha cabeça e rosto raspados.

Retrato_tiradentes

Possível retrato de Tiradentes, baseado em poucas descrições.

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