Germano Müller era descendente de alemães. Se não bastasse o nome, o tipo físico não lhe negava a origem. Um gigante corpulento, de cabeleira farta e branca como a neve que cobre a cumeeira das montanhas de Wetterstein, ostentava olhos profundamente azuis, duas bolas de gude engastadas no rosto corado, iluminado por um sorriso de menino arteiro, travesso na medida certa, sem consequências maiores do que o divertimento alheio e o próprio.

A voz possante, grave e límpida, dava calor às palavras, agradava aos ouvidos de quem escutava suas histórias rocambolescas e inverossímeis. Como todos os bardos, deixava a imaginação reinar, apoderar-se da razão e, assim, criava caminhos sinuosos que serpenteavam por paisagens sedutoras, pintadas com as cores mais atraentes de um arco-íris de emoções extraordinárias para os sonhos simples dos amigos, pessoas comuns, que nunca, jamais lhe recusaram credibilidade.

“Meu pai foi herói de guerra, lutou na frente russa. Comeu o pão que o diabo amassou, carne de cavalo e até humana. Perdeu uma perna e um braço no gelo, mas ganhou uma medalha de honra, uma merdinha de latão, coisa vagabunda. Dia desses, eu mostro!”.

Uma ocasião, Germano falou de um sujeito, dono de pizzaria, simpático, beberrão, que a certa altura da vida depositara fundos e esperanças naquele negócio de todo desprovido de encanto. Todavia, por trás do gosto insípido das massas do pizzaiolo de primeira viagem, escondia-se o sabor amargo de mais um caso fantástico.

Em tempos idos, o Maneco - este era o apelido do personagem - exercera a profissão de médico, preocupado com as crianças desvalidas, idosos em vias de despedida, mães solteiras largadas da sorte, os pobres contumazes nas filas sem fim da assistência social. Assestara seu rumo naquela direção, empenhando-se com todas as forças para cumprir a tarefa, sua missão, sua sina. Seguia fiel ao papel escolhido, quando o pai caiu doente, vítima de um câncer avassalador, irrefreável. Com toda a sabedoria de doutor formado pela mais conceituada faculdade do país, não encontrava a poção, o remédio, um tratamento capaz de livrar o velho querido da degeneração galopante. Ao chegar a casa todos os dias, espelhava o olhar martirizado do pai, refletindo um pedido de clemência, um apelo desesperado pela absolvição do pecado de sofrer a própria morte de forma lenta e inexorável. Não resistiu, aplicou a injeção misericordiosa. Matou de uma só vez duas pessoas: o pai e ele. Despediu-se da medicina e disse olá ao ofício de cachaceiro, tornou-se um porrista juramentado, com carteirinha e registro em cartório. Bebia das sete da manhã às dez da noite e, para desespero da mulher, nunca mais se deitou sóbrio. O doutor Manoel de Sá passou, então, a ser conhecido no bairro como Maneco da pizzaria.

Não faltavam casos interessantes ao alemão, mas, o sucesso daquela tragédia o levou a repeti-la à exaustão nos encontros costumeiros com a rapaziada. Pontuava o relato da mesma forma, permitindo suas próprias lágrimas, grossas e incontroláveis como as enchentes do Danúbio. Numa espécie de ritual, enxugava o pranto copioso nas mangas da camisa, polindo os olhos de brilho cerúleo para seguir mirando outros casos surpreendentes.

“Conhece o morador do dezessete? É matador de encomenda. Já despachou mais de cem com uma discreta engenhoca que dispara dardos minúsculos. Se atirar na sua perna, você nem vai sentir. É quase uma picada de mosquito. Só que ele usa ‘curare’ na ponta das setinhas! No dia seguinte, você tá morto! Veneno de índio, malandro, veneno de índio! O cara é profissional, profissa”.

Mano Müller - como todos o conheciam em Jacarepaguá - morava bem, num cenário de cinema, decorado no capricho do melhor arquiteto de ‘Casa e Jardim’, segundo o gosto apurado de dona Nésinha, sua cara metade. Na mansão, cada detalhe tinha um significado, cada peça um propósito, uma função. Não havia visitante que não se deixasse cativar por aquele ambiente requintado, repleto de objetos lúdicos. A cafeteira do século dezenove funcionava de verdade. Requeria um ritual demorado, no entanto, produzia um líquido de perfume inebriante, espesso e saboroso como nenhum outro cafezinho. Da mesma forma, o forno colonial a lenha, de complicado manuseio, oferecia pães e carnes bem assados, de paladar inigualável. As taças de cristal da Bavária, de pureza revelada com petelecos sonoros, sabiam comportar o vinho e o champanhe, servidos aos comensais em cerimonial quase eucarístico. Os escolhidos, as pessoas que ele convidava, privavam de momentos soberbos, como se fossem iniciados de um culto hedonista. Ninguém, absolutamente ninguém, ficava imune às deliciosas tertúlias bancadas pelo Mano.

Numa manhã outonal de cinzentisse discreta, típica do Rio de Janeiro, o colosso ariano, de reações até então moderadas, alucinou ao dar de cara com uma mulher subindo a Estrada do Tirol. Tratava-se de uma criatura muito mais velha do que ele, exuberante de modos, opulenta de carnes, senhora de nádegas desproporcionais. Um ser que orbitava em torno da própria bunda, se é possível definir desse modo. Mano Müller pisou fundo no freio da Mercedes Benz oitenta e oito, quase provocando um acidente. Deixou o carro atravessado no meio do asfalto, atrapalhando o trânsito, e despenhou-se na perseguição ao lordo formidável. Apaixonou-se sem meias medidas, babou solenemente por aquela mulher rodada, uma puta carioca de mil programas, mil armadilhas. Caiu de quatro, arriado nos quatro pneus.

A esposa de tanto tempo, amantíssima, primeira namorada; a casa de revista, seus brinquedos preferidos; os amigos de sempre; as estórias cativantes e a verve de bardo; tudo, tudo esboroou-se naquela aventura medíocre, desprovida de sentido e de encanto, à feição de um rabo apocalítico.

Germano Müller manteve o romance aceso durante mais de ano, até o dia em que foi sequestrado pelo cafetão da biscateira. Pagou resgate pesado, limpou a conta no banco. O crime rendeu manchetes por quase uma semana nos jornais mais sensacionalistas. Da mesma maneira em que buscou uma explicação para si mesmo, tentou justificar o absurdo para dona Nésinha. Não conseguiu. Enfrentou um processo de divórcio penoso, que se arrastou por meses de miséria. Perdeu sem recurso, com a resignação estúpida de quem vê ruir por nada o prestígio, o respeito, o amor verdadeiro. Sua vida desmoronou de meada com a vontade de recomeçar. Suicidou-se com um tiro de quarenta e cinco na cabeça. Sem veneno, sem requinte, direto nos miolos. Como diria o vizinho matador do dezessete, “coisa de amador”.

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