Zuza Homem de Mello, meu querido amigo Zuza, nos deixou na madrugada de 04 de outubro deste ano tão difícil, assim como quem passa de um compasso a outro com a elegância dos grandes músicos. Ele se foi sem saber que era meu amigo. Temos essa veleidade de sentir amizade por pessoas que não privamos do convívio, mas o vínculo parece existir de fato por estarmos tão identificados com elas.

Assim foi com o Zuza, um dos meus mestres nos intrincados caminhos do mundo da música. E que mestre! O amigo mais generoso é aquele que nos franqueia todo o seu conhecimento, toda a sua história e que está sempre à disposição para nos orientar. O Zuza tinha essa missão: ensinar-nos a ouvir música. E o fez com tanto empenho e devoção que sempre me pareceu que a música com M maiúsculo não seria a mesma se ele não estivesse tão entranhado a ela.

Zuza era meu amigo desde o início da minha adolescência. Eu não sabia disso à época, claro, fui sabendo com o passar do tempo. A paixão pela música brasileira teve o seu início lá pelos meus 12 anos, ao acompanhar os programas musicais da TV Record. Zuza era o técnico de som, por exemplo, de “O Fino da Bossa” com Elis e companhia, de “Bossaudade” com Eliseth e Cyro Monteiro, da “Jovem Guarda” com Roberto Carlos e turma. Todos eles de 1965, eram programas ao vivo que apresentavam um leque extremamente variado da música que se fazia no Brasil. Os lendários e inesquecíveis Festivais de Música Brasileira da TV dos Machado de Carvalho nos anos seguintes, os quais eu assistia petrificado, tentando entender o que estava acontecendo, que canções, intérpretes e compositores eram aqueles que suscitavam tanta loucura e frenesi, tinham a expertise do Zuza no som e em seu inegável conhecimento musical que já vinha lapidado por anos morando em New York, estudando música e acompanhando in loco – vivenciando mesmo, literalmente – o apogeu do jazz.

A rica história de Zuza Homem de Mello foi se desenvolvendo feito um turbilhão de sons. Músico (iniciou sua carreira como contrabaixista e teve professores como Ray Brown, um dos maiores jazzistas da história), musicólogo, pesquisador e historiador, produtor de espetáculos de TV, de shows e de discos, jornalista e crítico em tantos jornais e revistas, autor de livros saborosos e detalhistas, sua vida foi nos legando presentes que, por vezes, nem nos demos conta.

Os Festivais de Jazz de São Paulo no final dos anos 1970 tiveram a curadoria do Zuza (e a maioria dos outros posteriores que aconteceram no país). As noites maravilhosas do primeiro e do segundo, em 1978 e 1980, no Palácio das Convenções do Anhembi, com uma inacreditável seleção de músicos do jazz mundial e de músicos brasileiros notáveis habitarão minha memória para sempre. A minha biblioteca obstruída por uma papeleira sem fim com certeza guarda os recortes colecionados dos jornais da época. O que se pode esperar mais de um grande amigo? Uma generosidade sem limites e o auxílio em um daqueles ritos de passagem que nos alça a novos patamares de conhecimento e que deixam marcas indeléveis.

E o rádio então? O rádio, desde sempre, foi outra das minhas grandes paixões. E na minha passagem para a fase “adulta” lá estava ele comandando diariamente o “Programa do Zuza” na Jovem Pan, das 17 às 18 h, de 1977 a 1988. Eram aulas diárias sobre a grande música mundial. Como o próprio Zuza escreveu, “sem nenhum dia de ausência”. O recente “Playlist do Zuza”, da Rádio USP, revivia esses grandes momentos radiofônicos, de intimidade e prazer sensorial, e nos brindava com raridades e novidades da multifacetada música brasileira.

Eu estava lendo os ensaios do livro “Música nas Veias” desde meados de setembro e – triste coincidência – foram as minhas “últimas aulas” do Zuza com ele ainda vivo. Viajei nas suas tantas histórias vividas no mundo do jazz dos anos 1950 nos USA, nas suas pesquisas inesgotáveis sobre as orquestras brasileiras da primeira metade do século XX – com nomes completos de músicos e tantas fotos, um retrato muito intenso do genial Jacob do Bandolim, histórias do mundo do rádio e um trabalho primoroso sobre orquestras de jazz e de bailes da Berlim do período entre as duas grandes guerras mundiais. Ainda me faltam dois ensaios, “Vozes da Alcova” e “Nada como o show business”, mas já não terei o mestre por perto.

Infelizmente, não tive tempo e chances de agradecer ao Zuza como deveria. Sim, confesso, tive algumas chances mas o que me faltou foi coragem. Ou sobrou demais uma indesculpável timidez. As últimas delas aconteceram em maio de 2019 quando estive na Casa do Saber para participar de duas palestras dele sobre a música brasileira. Maravilhosas, por sinal. Cumprimentei-o pessoalmente no intervalo de uma delas e quase cometi uma dessas gafes terríveis, um “como vai Zuza, lembra de mim?”, mas tive a sorte e o tirocínio de me conter. Estive também ao seu lado no bar da Casa, Zuza tomava um café com sua esposa Ercília, e perdi a chance. Fiquei ao seu lado também na saída de um dos eventos, ambos esperávamos nossas conduções, e novamente perdi a chance. Estive a poucos passos de lhe lançar a questão “existencial” que tinha ensaiado tanto: “a Divina Eliseth – minha preferida – ou Elis?”.

Não perguntei e acho que jamais saberei. Ou, quem sabe, encontre a resposta em seus livros e em suas entrevistas. Sei, no entanto, que aprendemos e ainda continuaremos a aprender um pouco do vastíssimo conhecimento de Zuza Homem de Mello sobre a voz humana, as vozes de todos os instrumentos e a Música como bálsamo para nossas vidas.

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