Já perdi as contas das vezes em que li e ouvi esta frase: ‘Deus é mulher’. Até o novo álbum da cantora Elza Soares estampa este título. Não concordo de jeito nenhum. Se Deus fosse mulher, o mundo seria bem melhor.

As mulheres são seres iluminados. Evoluídas, estão imunes aos dilemas neandertais que afligem os homens. Para começar, não saem de casa para vencer a qualquer preço. Quando vão às ruas, é para somar, agregar, estabelecer regras gerais - sem trocadilho. As mulheres conseguem, com a maior facilidade, realizar o que para nós, homens, é uma missão severa, quase impossível de materializar: elas costuram alianças, enquanto só pensamos em ganhar dos adversários.

As mulheres são sábias e mentalmente privilegiadas. Conseguem realizar duas ou mais tarefas simultaneamente, na medida em que tropeçamos no be-a-bá da cognição, ou seja, os estados mentais e processos como o pensar, a atenção, o raciocínio, a memória, o juízo, a imaginação, o discurso, a percepção visual e auditiva, a aprendizagem, a consciência, as emoções etc.. Disparar a política financeira de uma grande empresa, atender um chato ao telefone, orientar uma babá atrapalhada e marcar um jantar para vinte japoneses incubados pelo Godzilla, tudo ao mesmo tempo e agora, é tão simples para elas, como pregar aquele botão, ato no qual nós, os varões, vertemos mais sangue do que na doação anual.

A Organização das Nações Unidas, a velha e boa ONU, convencionou o dia 8 de março como data maior da irmandade feminina. O Dia Internacional da Mulher alude a um momento importantíssimo, uma espécie de despertar da consciência feminina, algo que se busca consolidar até hoje. Na mesma data, em 1917, centenas de operárias russas foram massacradas pelas tropas do czar Nicolau II, quando reivindicavam seus mais básicos direitos profissionais e sociais. Segundo vários historiadores, foi aí que Nicolau começou a perder o assento, quer dizer, o trono.

Naquela época, nossas avós ou bisavós não tinham direito a nada. Sem voz de opinião, sem desejos nem prazeres, sem liberdade, sem esperanças, sem opção de destino, elas viviam à mercê do mundo masculino.  Sequer podiam recusar as investidas dos próprios maridos. Conta-se até hoje na minha família – com certo constrangimento - que o meu bisavô, dom Hernandez, dizia para a minha bisavó: ‘dona Ignez, banhe-se na água de cheiro, pois vou me servir da senhora nesta noite’.

Um ser de segunda categoria? Não! Nunca! Coadjuvante? Não mais. A mulher de hoje é protagonista, linha de frente, promotora de mudanças na sociedade; agente, atriz de primeiro plano no show da vida. Mas, como traçar o mapa dessa mudança? Com quem a virada de mesa começou no Brasil? E como prosseguiu?

Vamos dispensar Dandara, a mulher de Zumbi dos Palmares. Temos sobre ela raríssimas informações comprovadas, originadas de relatos orais que foram se modificando ao longo do tempo. No mais, tudo é suposição. A natureza marginal de um quilombo no fim dos anos 1600, situado na Serra da Barriga, em Pernambuco, hoje União dos Palmares, Alagoas, não nos deixa um acervo de dados confiável. Além de tudo, a história é escrita pelos vencedores, no caso, o bandeirante Domingos Jorge Velho, que aniquilou o reduto de resistência à escravidão.

Então, teremos de saltar uns cento e poucos anos para começar a encontrar as matrizes do feminismo nacional. No início do século XIX, cresce aos olhos a imperatriz Leopoldina, arquiduquesa austríaca, casada com d. Pedro, o primeiro imperador do Brasil. Ela também foi a primeira mulher a governar a nossa terra, muito antes da princesa Isabel e de Dilma Rousseff. Quando o então regente se ausentava da Corte, ela mandava e desmandava. Foi numa dessas ausências em que presidia o Conselho de Estado, que Leopoldina assinou uma recomendação para que o marido separasse o Brasil de Portugal. A carta encontrou o príncipe às margens do Ipiranga. Faça a independência, senão... Ameaça de mulher é fogo!

Um ano mais tarde, encontraremos mais dois exemplos: a negra Maria Felipa de Oliveira, marisqueira e capoeirista, e Maria Quitéria de Jesus, ambas combatentes na guerra baiana pela independência. Maria Felipa liderou um destacamento de 40 mulheres que defendia a ilha de Itaparica e vigiava a entrada do porto de Salvador. Em janeiro de 1823, essas mulheres seduziram os soldados portugueses que pretendiam dominar o pedaço, e depois de lhes aplicar uma formidável surra de cansanção, planta semelhante à urtiga, atearam fogo às embarcações lusitanas, frustrando a invasão.

Por sua vez, Maria Quitéria, ou o soldado Medeiros, abandonou a casa dos pais, furtou o uniforme do cunhado e, assim travestida, engajou-se no Batalhão dos Periquitos. Mesmo desmascarada, não foi dispensada. Era tão boa combatente, que o general Pierre Labatut lhe conferiu honras de primeiro-cadete e, ao fim do conflito, o próprio imperador lhe concedeu a insígnia de Cavaleiro da Imperial Ordem do Cruzeiro. Hoje, Maria Quitéria é nome de rua em Ipanema, bairro nobre do Rio de Janeiro, imortalizado por outra garota, cantada em verso e música por Vinícius de Moraes e Tom Jobim.

Pulando mais algumas décadas, chegaremos à Guerra da Tríplice Aliança em 1865, mais conhecida como Guerra do Paraguai. Dentre tantas heroínas dignas de registro, nossa escolha recai sobre Ana Néri, pioneira da enfermagem no Brasil. Ao ver os três filhos convocados para o embate apresentou-se como voluntária aos 51 anos de idade, prestando relevantes serviços, muito além do dever, nos campos de batalha. A primeira escola oficial de enfermagem no país recebeu seu nome e o dia nacional da categoria é comemorado na data de seu falecimento, 20 de maio.

O empoderamento feminino passa, também, por Maria Tomásia Figueira Lima, abolicionista, fundadora da Sociedade Cearense Libertadora, em 1882. Como resultado de sua luta, o Ceará acabou com a escravidão em 1884, quatro anos antes da Lei Áurea. E a festa de Vênus continua no compasso rebelde da musicista Chiquinha Gonzaga; na coragem de Leolinda Daltro, primeira feminista, criadora do Partido Republicano Feminino; no pioneirismo de Celina Guimarães Viana, primeira brasileira a votar, em 5 de abril de 1928, no Rio Grande do Norte; na conquista extraordinária de Carlota Pereira de Queiroz, primeira deputada federal do Brasil, eleita em 1934 pelo Estado de São Paulo, e na maravilhosa ousadia de Enedina Alves Marques, primeira negra a se formar em engenharia.

Seria preciso uma enciclopédia, ou pelo menos um livro de grosso calibre, para elencar todas as admiráveis mulheres que formaram este país tão maltratado pelos homens. Desde Chica da Silva, Anita Garibaldi, Julia Lopes de Almeida, tia Ciata, Zilda Arns, Nísia Floresta, Cora Coralina, Raquel de Queiróz, Clementina de Jesus, Maria Lenk, Maria Esther Bueno, até Zuzu Angel, Leila Diniz, Laura Cardoso, Ruth de Souza, Fernanda Montenegro, Ivone Lara, Hortência, Magic Paula, Daiane dos Santos e Marta.

Revolucionárias, guerreiras do lado luminoso da força, essas criaturas abençoadas, geradoras da vida, seguem nos encantando com sua inteligência, sagacidade, preparo, sensibilidade, ética, eficiência e... sexto sentido. Para atestar tudo isso, eu fecho esta coluna com o caso que um grande empresário brasileiro me confidenciou. A história aconteceu lá no início de tudo, quando ele ainda engatinhava na carreira e precisava apresentar um projeto de negócio a um possível parceiro, já bem-sucedido. Passou a noite trabalhando no porão onde morava, espancando a máquina de escrever. Produziu páginas e páginas detalhando o plano. Quando o sol nasceu, exausto, mas feliz com o resultado do trabalho, decidiu apresentá-lo à mulher. Assim que acabou de ler, a reação o surpreendeu: “você foi brilhante” – disse ela, “descreveu todo o processo, tim tim por tim tim. Ou seja, você está revelando o pulo do gato. Se entregar isso ao seu parceiro, ele não precisará mais de você. Faça com que ele se interesse e queira  saber mais”.

Dito e feito. Ele enxugou a proposta de negócio, omitiu os atalhos, e ganhou o contrato que o projetou para o sucesso.

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