O ano de 2019 terminou com uma polêmica que pode fazer estragos nos canteiros onde começam a germinar, no Brasil, as sementes da acessibilidade: de um lado está o impetuoso Luciano Hang, o dono da Havan, a mais vigorosa rede de lojas de varejo que se espalha por todo o país; e de outro está o promotor público de Chapecó, no Oeste de Santa Catarina, Eduardo Senz dos Santos.

Bem a seu estilo, Hang foi para as redes sociais denunciar o promotor pelo que chamou de “excesso” de exigências em acessibilidade para aprovar o licenciamento de uma Loja da Havan na cidade.

Numa de suas lives (transmissão ao vivo em rede social) feitas para gerar polêmica, Hang ironizou cada uma das 60 exigências, chamando o piso tátil para cegos de “jabuticabas esparramadas pelo chão”; criticou o excesso de barras de apoio no banheiro – “servem como vomitório?” –; fuzilou a burocracia interminável e concluiu: “Atrasamos a instalação da loja de Chapecó por várias semanas por causa dessa porcaria de acessibilidade!”, garantindo que todas as suas lojas instaladas em vários estados brasileiros têm acessibilidade.

Já o promotor Eduardo Senz se fechou em copas e não respondeu a nenhuma das mídias que o procuraram.

Ponto de Inflexão

Para quem, como eu, clama por mais acessibilidade, o incidente de Chapecó – chamemos assim – é um belo ponto de inflexão para alimentar o debate – necessário! – sobre a inclusão no Brasil.

Lembremo-nos, primeiro, da premissa lançada pelo movimento Web para Todos: “É preciso parar de fazer PARA os deficientes e começar a fazer COM os deficientes”. E me pareceu que tanto Luciano Hang quanto o promotor Eduardo Senz dos Santos estão presos à ideia, que é generosa, de fazerem o melhor possível para prover conforto e segurança às PNEs (Pessoas com Necessidades Especiais). Esqueceram-se apenas de conferir com os beneficiários se o que fazem e o que exigem é mesmo o que é necessário e o certo a ser feito.

Suspeito que não! Faltou uma pitada de bom senso de cada lado!

Até assistir ao pronunciamento do empresário, eu não conhecia nenhuma loja da Havan. Fiz questão de visitar uma delas – a de Hortolândia, cidade com quase 200 mil habitantes na região de Campinas – para conferir se Hang falava mesmo a verdade ao dizer que todas as suas lojas, de construção padronizada, têm mesmo a acessibilidade necessária.

Simpatia a voluntarismo

Diria que a acessibilidade não me encantou tanto quanto a simpatia, a comunicabilidade e o voluntarismo da equipe de funcionários. A Havan é mesmo um empreendimento em ascensão, o que demonstra a motivação da equipe que opera a loja de Hortolândia e de muitas outras, pelo que se observa pela TV.

Chega-se de carro até o estacionamento coberto com vaga para cadeirante; bom acesso!

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Rampa inescalável pela maioria dos cadeirantes: eu mesmo não passei dos cinco metros. Foto: Eli Firmeza

Para fazer compra, as PNEs precisam enfrentar uma rampa, suave, munida de corrimãos, de setenta metros que leva a clientela a um andar superior onde as mercadorias estão expostas em gôndolas simétricas.

Não há elevador e nem banheiro acessível em cima; quem precisar usar o banheiro tem de descer a rampa e haja disposição para subir de novo e continuar as compras.

Para subir à loja, há também uma esteira-rolante, vedada a cadeirantes.

Tentei subir a rampa em minha cadeira de rodas: não tive fôlego nem força para escalar mais de cinco metros.

Vi alguns poucos idosos na loja e nenhum cadeirante além de mim.

Os funcionários são mesmo uma graça! Trabalham espalhados pela loja e são facilmente identificados pelas cores alegres do uniforme que inclui uma camiseta verde com a frase em amarelo: o Brasil que queremos só depende de nós.

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Esteira vedada a cadeira de rodas. Foto: Eli Firmeza

- Quantos metros têm essa rampa, hein, moça ? – perguntei a Lisângela Oliveira e ela, talvez culpando-se por não saber, me deixou ali em conversa com sua colega Fabiana Maciel e saiu... Voltou dali instantes com a resposta: “Meu passo tem mais ou menos um metro... fiquei curiosa e contei: são 69 passos!”

Uma funcionária me leva

Na hora de sair, meu filho Eli, que é fotógrafo profissional, fazia algumas fotos a distância e me deixou parado na entrada superior da rampa. Maria Elivânea Sobral da Silva, também com a camiseta verde e amarela, passava por ali e me perguntou se eu queria descer... Reagi com surpresa:

"Mas você aguenta meu peso?". Era pequena e exalava simpatia: "Não tenha a menor dúvida de que aguento sim!"

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Simpatia e voluntarismo que impressionam: Fabiana Maciel e Lisângela Oliveira. Foto: Eli Firmeza

Descemos em dois minutos e ela, a caminho do almoço, encontrou tempo para escrever seu nome num guardanapo. Com funcionários assim, nem precisaria de acessibilidade, pensei, encantado.

Paramos na lanchonete, tomamos um café de máquina delicioso, visitei o banheiro acessível (barra só à direita do vaso, um problema para os que sofreram paralisia direita) e na volta pensava algo assim:

– Se o promotor Eduardo Senz dos Santos trabalhasse em parceria com entidades de defesa da inclusão teria convencido o empresário Luciano Hang a implantar elevador em suas lojas e, ao invés de fazer tantas exigências, faria uma só, de importância capital – exigiria um banheiro acessível dentro da loja e onde as pessoas fazem compras.

– Por sua vez, Luciano Hang, se procurasse trabalhar COM as PNEs, descobriria muitas outras coisas que elevariam o seu empreendimento e multiplicariam seus lucros. Aprenderia, por exemplo, que longe de “ser uma porcaria”, a acessibilidade – e só ela – é capaz de tirar os deficientes da clausura doméstica para levá-los às compras, quebrando na espinha o atual círculo vicioso – como sabem que não vão encontrar ambientes acessíveis, eles não saem de casa e, como não saem de casa, a sociedade pensa que eles não existem.

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O banheiro da loja de Hortolândia é limpo e asseado, mas não tem barra à esquerda, um problema sério para os que têm o lado direito paralisado. Foto: Eli Firmeza

– Da minha parte, deixo registrada aqui uma sugestão a Luciano Hang: treinar um ou mais funcionários, a depender da demanda, para serem os “anjos-da-guarda” dos deficientes visuais em suas lojas; pode então esquecer os “pisos táteis” e sinalizações em Braille. O funcionário levaria esse cliente especial às compras e o ajudaria em tudo na loja. Lembro ao Luciano que os deficientes visuais são a grande maioria das pessoas com necessidades especiais. Se implantada, a medida ganharia forte repercussão nacional e internacional, pois seria uma iniciativa inédita e pioneira no comércio de varejo que hoje, por falta de acessibilidade, rejeita as PNEs.

Mais de sete trilhões de dólares

Vejam estes dados apresentados no recente Fórum da Internet no Brasil, promovido pelo Comitê Gestor da Internet (CGI.br):

• O Brasil tem 45 milhões de pessoas com algum tipo de deficiência; elas são 1,3 bilhão de pessoas no mundo. Juntas, essas pessoas respondem por US$ 7 trilhões em poder de compra anual no mundo, dos quais pelo menos R$ 22 bilhões estão no Brasil;

• E os números são bem maiores se incluirmos os idosos entre os que precisam de apoio em mobilidade. Não podemos nos esquecer que o Brasil começa a envelhecer com mais celeridade.

Nada mal, né, Luciano Hang?

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