Vivi para ver o mundo parar e vivi para ver a medicina e a genética prolongar a vida humana para além dos 100 anos!

Aqui em casa, onde permaneço trancafiado já por quatro semanas a fio, proibido de ver minhas três netas, proibido de passear, viajar ou frequentar um restaurante, consigo imaginar como as cidades brasileiras são perversas com os idosos e pessoas com restrições de mobilidade.

Sim, pra valer a pena, a longevidade precisa ser parceira indissociável do acesso, pois sem este, a vida perde a graça e pode transformar-se em algo insuportável.

Tenho na família um caso concreto: refiro-me a S. A., um homem exemplar que no fim do ano passado atravessou a barreira dos 90 anos. Foi, em São Paulo, onde vive desde garoto, um dos mais respeitados construtores de ambientes finos e sofisticados da cidade.

Ao construir sua casa, há 50 anos, errou a mão: é um sobrado sólido, bem construído, mas cheio de escadas – é escada pra entrar em casa, escada pra subir do escritório para a sala, escada pra subir para os quartos, escada pra passear pelo quintal.

Em pleno confinamento, meu e dele, nos falamos por telefone. Não foi difícil perceber sua angústia: “Nossa empregada mora em Paraisópolis, não muito longe do Albert Einstein, onde morreram os dois primeiros pacientes infectados pelo novo coronavírus no Brasil, e ela se apavorou, disse que nem estava mais dormindo direito de preocupação.... E eu falei pra ela: torço para que esse vírus chegue com força e leve embora todas as pessoas com mais de 70 anos”.

Para acalmá-lo, contei algumas anedotas e ele riu muito.

Herança lusitana

Não se entende por que as pessoas que vencem o desafio de construir a própria casa raramente pensam na velhice e na restrição mais severa de mobilidade que pode vir acompanhada de um AVC ou de um acidente qualquer, infortúnios que afetam a vida de pessoas de todas as idades.

Constroem-se casas para pessoas de porte atlético e dá-lhe degrau por toda parte.

Foram os portugueses que transferiram para a arquitetura brasileira essa paixão pelo degrau. Essa característica da arquitetura portuguesa foi minuciosamente descrita na obra “Urbanismo de Colina - Uma Tradição Luso-Brasileira”, de Leal da Costa Lobo e José Geraldo Simões Junior. Preocupados com segurança, os colonizadores erguiam prédios e igrejas sobre elevações e morros, provendo o acesso com imensas escadarias.

Ao longo da vida, não me lembro de ter visitado uma única casa sem trombar com degraus, uma praga nacional. Até a famosa rampa do Palácio do Planalto termina em degraus, me falou com indignação a senadora Mara Gabrilli.

Já o prefeito de Curitiba, Rafael Grecca de Macedo, dos poucos prefeitos brasileiros com sensibilidade para perceber o quanto é difícil promover a acessibilidade nas cidades brasileiras, me disse que há vários degraus para chegar até os camarins do Teatro Guaíra, “como se os artistas brasileiros não tivessem o direito de envelhecer”.

Já escrevi aqui – e repito – que uma cidade só poderá desenvolver a acessibilidade plena e ideal no dia que o mais anônimo dos serventes de pedreiro tiver consciência de que toda vez que implantar um desnível no piso, ainda que seja de meio centímetro, estará criando um obstáculo intransponível ou capaz de provocar uma queda grave de um idoso ou de uma pessoa com necessidades especiais.

Cada casa, um sofrimento

Aqui nesta prisão domiciliar sem tornozeleira eletrônica, me ponho a imaginar o sofrimento e a angústia das pessoas trancafiadas  em espaços reduzidos  e com dificuldades incríveis de acesso.

Formam a maioria da população das grandes cidades que confinam os seus pobres em favelas, cortiços, guetos, quando não em morros e encostas, zonas de altíssimo risco.

E há mais: se ligam a televisão, são bombardeadas por uma cobertura difusa, errática, da pandemia, feita muito mais para aterrorizar do que para informar.

E as que têm restrições de acesso são sempre as mais prejudicadas, pois até a internet, seja para se informar ou se distrair, lhes é negada por essa indiferença sado-masoquista da sociedade brasileira. Apenas um por cento dos sites da web nacional dispõe de acesso a deficientes visuais e outros, embora já tenham sido desenvolvidos aplicativos que permitem o uso por todos.

Seria ótimo se aproveitássemos o confinamento para refletir sobre esse encontro, necessário e urgente, da acessibilidade com a longevidade. Talvez saiamos dessa pandemia melhores e mais solidários do que entramos!

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