Será que alguém sabe quantos refletores tinha o velho Maracanã? Será que algum dia, alguém se deu ao trabalho de contá-los? Desconfio que não. Isto é, exceto o meu filho, que aos oito anos, em sua primeira visita ao colosso de concreto, dedicou-se à tarefa, desprezando solenemente as botinadas que Vasco e América trocavam no gramado.

Ah, o glorioso Maracanã! O popular Maraca, batizado oficialmente de estádio Mário Filho. Ninguém o chamava assim, a não ser Nelson Rodrigues, o irmão mais famoso do Mário. Aliás, o nome adotado pelo povo remete a uma ave abundante na região, a Maracanã-guaçu, espécie de papagaio que, como a maioria dos centroavantes, há muito sumiu da área.

O estádio foi construído no lugar onde funcionava o Derby Club, espaço destinado às corridas de cavalos. As obras começaram em 1948 para o Mundial de Futebol de 1950, mas só ficaram totalmente prontas em 1965. Naquela época, o governo já detonava prazos e o superfaturamento era denunciado diariamente pelo deputado federal Carlos Lacerda. Alguma semelhança com o momento atual? Todavia, essas coisas não importam mais. Agora, o que realmente interessa é a história!

A partida inaugural aconteceu em 16 de junho de 1950, entre as seleções de São Paulo e do Rio de Janeiro. Os paulistas venceram por 3 a 1, e o primeiro gol foi assinalado por Didi, então jogador do Fluminense. O que pouca gente sabe é que, na verdade, o primeiro jogo se dera na véspera, entre os times dos operários e dos engenheiros. Apesar de não haver registro, acho que os operários ganharam. Afinal, para os engenheiros, jogar é preciso, vencer não é preciso – com as devidas desculpas a Fernando Pessoa.

O Mundial de Futebol veio e, com ele, a final dolorida. Perdemos para os uruguaios. Uma cicatriz eterna no coração do torcedor, só comparável aos 7 a 1 para a Alemanha em 2014. No entanto, o Maraca sobreviveu à primeira decepção e seguiu em frente, festejando paixões de todas as cores e bandeiras. Os imensos degraus de sua arquibancada e o piso áspero da geral receberam torcidas de todo o país, de vários rincões do mundo, todas irmanadas pelo doce prazer de ver o jogo da bola. Arquibaldos e geraldinos – como chamávamos quem frequentava arquibancada e geral - assistiam juntos e felizes aos golaços de Ademir, Zizinho, Roberto Dinamite, Zico, Gerson, Rivelino, Tostão, Garrincha, Romário, e tantos outros craques que por alí desfilaram seu talento na prática do esporte das multidões, o ‘nobre esporte bretão’, como diziam os velhos locutores do rádio.

Eu estava lá, na companhia de outras 65 mil testemunhas, quando o gênio de todos os gênios, um tal de Edson, marcou seu milésimo gol. Foi na noite de 19 de novembro de 1969. Foi na cobrança de um pênalti. Lembro-me bem da bola branca resvalando na mão do Andrada, goleiro do meu querido Vasco da Gama, para morrer mansa, obediente, no fundo da rede. Vibrei como se fosse a vitória do meu time, porque, de fato, era a vitória do futebol!

Via de regra, alguns geraldinos mais jovens levavam toscas bolas improvisadas com folhas de jornal amassadas, habilmente embrulhadas em meias de nylon femininas, para disputarem frenéticos rachões nos intervalos das partidas menos concorridas. Fazia parte da liturgia da casa!

Havia, ainda, tipos folclóricos que encantavam as velhas tardes de domingo. O corneteiro anônimo, que soprava os toques militares de atenção e atacar num prosaico talo de mamona; o pai de santo, de turbante e roupa branquíssimos, carregado de guias e patuás; o bebum errante, que atravessava jogos inteiros envolto numa bandeira irreconhecível, andando sem parar à beira do fosso.

Naquele tempo, estudantes e militares uniformizados não pagavam ingresso. Vem daí uma discussão antiga. Na frieza das estatísticas, o maior público do estádio monumental foi anotado em 31 de agosto de 1969, no jogo Brasil 1 x 0 Paraguai: 183 mil espectadores. Motivo de polêmica até a presente data, esta informação é contestada por muitos historiadores, que creditam o verdadeiro recorde à final do Mundial de 50, algo em torno de 200 mil pessoas.

Contudo, o velho Maraca também viveu seus dias de miséria. Lembro-me de uma noite de chuva forte, quando a caminho da faculdade resolvi matar aula para assistir a uma pelada no maior do mundo. Salvo erro, América x Madureira - eu sempre tive uma quedinha pelos diabos americanos. Havia tão pouca gente, que os vendedores ambulantes sentaram-se à minha volta. Curti a partida inteira na companhia dos meus amigos de ocasião, me esbaldando com sanduíches, biscoitos e refrescos ao preço de custo. Foi uma farra!

Sem jamais perder a identidade, o templo sagrado foi o palco de eventos alheios ao futebol. Os shows de Frank Sinatra, do ex-beatle Paul McCartney e dos intermináveis roqueiros dos Rolling Stones. Dentre essas atividades extracurriculares, o inesquecível desafio de voleibol que contrapôs União Soviética e Brasil numa partida eletrizante. Graças aos desconcertantes saques ‘Jornada nas Estrelas’ de Bernard e às cortadas precisas de Renan, levamos a melhor, derrotamos os campeões olímpicos e mundiais.

Lamentavelmente, esse Maracanã de todos não existe mais. No seu lugar, ergue-se um estádio transfigurado; luxuoso, belo, mas seletivo. Sem coração e sem alma. Fico me perguntando para onde foram os torcedores de outrora, aqueles que revidavam as provocações dos adversários com sorrisos desarmados? Por onde perambulam os vendedores de mate Leão, dos cachorros-quentes Geneal, dos biscoitos Globo, que mantinham com destreza um olho no freguês e o outro no gramado? Onde será que ecoam, agora, os aplausos que celebravam as jogadas de efeito, sem se preocuparem com as cores dos uniformes? Para onde foi a magia? Onde está o velho gigante de concreto? Onde se refugiou o melhor futebol do planeta? Decerto, apenas na nossa memória.

Quanto ao número de refletores, confesso encabulado que não me recordo. Talvez, o meu filho ainda se lembre.

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