Por estas bandas do país, todo mundo sabe o que é um bonde. Não o que a gíria peçonhenta dos traficantes traduz, um comboio de armas e drogas; não o que os funkeiros usam habitualmente para designar suas tribos. Mas, o termo que identifica aquele veículo pitoresco que, até há pouco, cruzava a extensão dos Arcos da Lapa, ligando o bairro de Santa Tereza ao centro da cidade.

O que talvez muita gente desconheça é que os bondes foram o principal meio de transporte no Rio de Janeiro durante mais de um século. No princípio, dividiam as ruas com os tílburis, coches e outros veículos de tração animal. Depois, com os primeiros automóveis e, por último, com os ônibus e microônibus, que chamávamos de lotações.

Essa convivência tornou-se impossível no final dos anos sessenta da centúria passada, quando a pressa de viver assumiu o controle da população, e o tilintar bucólico das campainhas dos elétricos foi abafado pela frenética insistência do toque das buzinas. Então, o poético anacronismo dos bondes perdeu espaço, rapidamente, para a insossa e insalubre modernidade dos motores a combustão. Ganhamos um tempo que desperdiçamos com afazeres e compromissos absolutamente insípidos e, via de regra, desnecessários, e perdemos o talento do bem viver, o compasso típico do carioca, a alma, o charme, a verve. Hoje, nosso trânsito é mais agressivo e caótico do que o de São Paulo, uma das maiores megalópoles do planeta. E o nosso famoso senso de humor ficou para trás, juntamente com os anúncios que nos deixavam cismados – “veja, ilustre passageiro, o belo tipo faceiro que viaja ao seu lado. Pois acredite, quase morreu de bronquite, salvou-o o Rum Creosotado”. Confesso que me distraí por viagens inteiras, tentando identificar a felizarda que o tônico milagroso havia salvado.

O bonde, em seu passear cadenciado sobre trilhos, não encurtava distâncias, não estimulava a ânsia de chegar a um destino, ao contrário, chacoalhava preguiçoso, alongando a jornada, enquanto motorneiro e condutor cumpriam o ritmo próprio de seus papéis. Com maços de notas entre os dedos, divididas por valor, o condutor cobrava as passagens, flanando pelos estribos, espécie de degraus externos, lugar onde viajavam os iniciados, aqueles que sabiam equilibrar-se, espremendo-se com técnica e coragem para abrir caminho ao coletor. Antes de tudo, o condutor era um acrobata. Em seu terno azul-marinho, quepe com emblema de latão polido, esgueirava-se entre as dezenas de estribeiros, com a lepidez de um bailarino. Quando intuía um calote, saltava com o carro em movimento para agarrar-se ao balaustre seguinte: “fais favoire, a passagem!”. Os condutores, em sua maioria, eram portugueses. Os motorneiros, não. Não sei por que, como até agora, não sei por que esses trocadores do passado chamavam-se condutores. Por costume, alertavam-nos quanto a qualquer perigo iminente, gritando a plenos pulmões: “olha a direeeeeita!”, mas era só. Nada que lhes pudesse valer o título, a designação.

Um deles, o seu Melo Castro, condutor do bonde setenta, Andaraí-Leopoldo, era um tipo extraordinário. Cevado, pernas curtas, mãos de dedos pequenos e grossos, ele exibia agilidade incompatível com sua natureza. Saltitava no trajeto entre os pontos, quicando nos paralelepípedos com a destreza de um circense. Sem deixar cair uma nota sequer, uma moeda, tomava posição no estribo, antes que se piscasse. Ninguém, ninguém lhe escapava à cobrança.

No entanto, no dia em que esqueci em casa os trocados da passagem, e me escondi no último lance de estribo do segundo carro, seu Melo Castro pousou sua mão gordinha no meu ombro e disse: ”ó garoto, não te amofines, amanhã tu me pagas!”. E foi-se rindo, com dentes amarelos e cariados. Nunca paguei a dívida, nem ele me cobrou. Até o fim da nossa curta relação, sempre que lhe estendia a notinha com a efígie do Duque de Caxias, me devolvia o troco certinho e uma piscadela cúmplice, sem dizer palavra!

O bonde era tão lento que, às vezes, eu o ultrapassava na corrida, na esquina da Rua Barão de Mesquita com São Francisco Xavier, para pegar outro que me levava até a Avenida Vinte e Oito de Setembro, onde ficava o Colégio João Alfredo. Numa dessas, fui atropelado por um Oldsmobile quarenta e oito, uma das velharias simbólicas e inesquecíveis que teimavam em trafegar nas ruas da urbe de São Sebastião. Com a agilidade dos meus doze anos, rolei pelo capô e cai do outro lado, com as calças rasgadas e uma mancha roxa na perna, nada que me afetasse a saúde ou o orgulho de guri.

No carnaval, o bonde era o coreto itinerante, o trio elétrico atual. Era tomado de assalto pelo populacho que, entre chuvas de confetes e serpentinas, cheirava lança-perfume da marca Rodo Metálica, até perder a noção do ridículo. As pessoas faziam uma festa no bonde! No final do trajeto, todos chegavam mais ou menos inteiros ao Tabuleiro da Baiana, no Largo da Carioca, ponto final das composições. E o bonde voltava ao roteiro de sempre, ao moto-contínuo, tilintando e rangendo pelas mesmas trilhas para arrebanhar outras levas de foliões renitentes.

Se a memória não me engana, uma ocasião fui com meu pai, que não se entregava aos folguedos, mas que apreciava com prazer os blocos de sujos, os mascarados e os loucos de todo o gosto. Protegido pelo abraço moreno do meu querido espanhol, eu vi um sujeito tomar o quepe do condutor e sair correndo, perseguido por ele. Acho que foi a primeira vez em que ouvi o xingamento “filho da puta!”. “O que é isso, papai? Nada, menino, o condutor conhece a mãe do rapaz”. Anos mais tarde, no Maracanã, ouvi de sua boca a mesma expressão, logo após um gol de Sabará, ponta direita do Vasco, contra o Botafogo, time de sua paixão. Já escolado, não pude deixar de pensar com meus botões: “papai conhece a mãe do Sabará!”.

Enquanto escrevo, tento recordar a última vez em que andei de bonde. Por mais que me esforce, não consigo. Gostaria de fechar esta crônica com uma imagem lírica, deliciosa, à altura daqueles tempos e momentos. Nada me vem à lembrança, a não ser uma tarde de chuva em que tentei pegar o bonde que vinha descendo a Leopoldo numa velocidade acima do normal. Meu pé resvalou num sapato qualquer e, quando ia caindo debaixo das rodas mortais, uma mão me agarrou pelo cós das calças e me trouxe de volta à vida. Não sei quem foi, mas, graças a ele pude contar esta estória. Obrigado! Para sempre, muito obrigado!

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