Sabe o que acontece? Fui um grande Enganador. Por todos esses anos pensei que sabia enganar muito bem. Mas só consegui enganar a mim mesmo, pois jamais quis me conhecer mais profundamente.

Exame de consciência? Para quê? Jamais acreditei em terapia. Achava que ninguém mais do que eu poderia me orientar. Não quis me expor, não quis que um desconhecido soubesse do que se passava comigo, até porque o que iria eu dizer? Que andava preocupado com meus negócios? Que quase matei meu filho de pancada ao saber que ele tinha engravidado a namorada, o infeliz preguiçoso que vivia a vida sem trabalhar e que nem teriam onde morar?

Que minha filha havia escolhido se ligar a um sujeito aproveitador, que não valia nada? Eu sabia de quem era a culpa. Era da mãe dela, minha primeira esposa. Muito irritadiça, descontava tudo na menina. Claro que ficou bobona. O primeiro que apareceu levou. Logo vi o tipo safado por quem se apaixonou.

Eu não podia, não tinha tempo para dar educação. Era a mãe, com aquele gênio maldito, que dava as cartas. Eu dava o dinheiro. Quando os dois saíram de casa para casar, dei um apartamento de presente para cada um. Mas em meu nome, porque eu sabia que aquilo tudo não duraria, como não durou o meu a ponto de envelhecermos junto.

Na volta da igreja eu já fiz as minhas malas volto para pegar amanhã. Diz aí o quanto você precisa para a casa, outro tanto para você e no fim do mês eu volto e fazemos as contas. Meu advogado me aconselhou a não abrir mão do patrimônio, porque ninguém naquela família saberia preservar nada.

Daí para frente foi um show de horror a cada visitação, até que nem fui mais pessoalmente, mandava minha secretária com o envelope. Pontual. Nunca deixei faltar nada, para nenhum dos três, nem para os agregados que me deram netos para eu também sustentar.

O que iria eu contar para um desconhecido, então, se o que eu mais queria era esquecer minhas desgraças? Refletir sobre minhas atitudes? Faz-me rir. Atitude de homem é trabalhar e fazer dinheiro. Fiz fortuna. Pode acreditar. Até a quarta geração ninguém vai precisar trabalhar. Tem de sobra.

Casei mais três vezes, mas não no papel. Deixei todo mundo bem. Um dia descobri que me chamavam O Garanhão dos Jardins. Mulher nunca me faltou. Mas sempre preferi as mais velhas, já assentadas, que mulher jovem é muito cansativa. Elas têm menos tolerância.

Esposas, era só eu enjoar que pulava fora. E o que me enjoa, até agora? Ter alguém querendo mandar em mim. Sou autossuficiente. Ninguém me dá ordens. Ninguém! Então, eu precisaria perguntar para um desconhecido o que eu deveria fazer da minha vida?! Eu sempre soube. Nasci com gênio forte, minha velha mãe dizia. Mamei até os quatro anos. Sempre perguntando, a mim mesmo e só a mim, o que deveria ser feito. Era eu comigo e mais ninguém.

As pessoas diziam que eu não me enxergava. Que eu achava que sabia tudo, que eu magoava as pessoas que me queriam bem, porque não aceitava críticas. Fosse empregado inconveniente eu despedia. Fosse mulher exigente eu separava. Fosse filho malcriado mandava para longe. Fornecedor? Trocava.

Desenvolvi o hábito de perguntar para mim mesmo tudo que precisava saber. Sempre fui honesto comigo mesmo, quando perguntava para mim mesmo o que era bom para mim.

Só sei que envelheci e não veio uma alma me cumprimentar nos meus 80. Foi então que me perguntei por que andava triste. Meu temperamento briguento agora estava acabrunhado. Passei meus 80 bebendo vinho na cobertura do apartamento de seis quartos. Todos vazios. Nenhum telefonema.

Foi então que me perguntei onde teria errado, se é que teria cometido algum erro e estava sendo castigado. Meu mim mesmo ficou calado. Ou ele não sabia o que me dizer, ou eu estava surdo para dentro. Só posso dizer que não gostei.

Nunca pensei que me encontraria tão sozinho, sem ter um amigo com quem bater papo. Sem um filho, uma filha, neto para me agradar, para me sorrir. Não gostei de me ver assim manhoso, choroso até. Eu, que sempre detestei festa de aniversário, principalmente aquela falsidade toda nos meus aniversários, chorei de vazio e de saudade de um, de outro. No silêncio, no escuro, eu me vi muito sozinho.

O meu mim mesmo também se calou. Não sei se porque fiquei de porre, chorei pelos tempos idos. Feito criança, chorei tudo que estava preso no meu peito, até enxergar dentro de mim. Fui um grande Enganador, tão bom por tantos anos que, no momento dos 80, procurando por mim com todas as minhas forças, a resposta veio límpida eu já não sabia mais quem era. Quem eu sou.

Bêbado, cambaleante, fui à minha biblioteca e sem muito critério abri um livro de poesia. Por tanto tempo usei a minha máscara, que ao tirá-la não pude reconhecer meu rosto. Peguei outro. Nalgum momento hás de encontrar-te contigo próprio. Esta será a tua pior hora ou teu momento melhor. Estavam falando de mim! Isso era fazer terapia? Eu me perguntei.

Abriu-se um espaço atemporal que existe dentro de mim. Mergulhei na angústia das minhas armadilhas e contradições. Pela primeira vez parei para realmente ouvir o que me diria a voz que se calara e que não me acusou, mas disse você é um farsante. Tornou-se personagem, deixou de ser pessoa.

Então, abri um livro de Fernando Pessoa. O poeta é um fingidor. Finge tão completamente, que chega a fingir que é dor, a dor que deveras sente. Ah, sim. Eu, fingidor, mas poeta? Serei eu também um poeta? Lembrei-me de ser menino e escrever trovinhas. Como eu gostava das rimas!

Lembrei também de como riram de mim lá em casa, quando minha irmã mais velha leu as cartinhas de amor que escrevia para mim mesmo, como se apaixonado estivesse. Lembrei minha primeira namoradinha. Tinha ido com meu pai, carrasco e minha mãe nervosa até a casa da menina que me fazia tremerem a perninhas, coração disparado, sem a menor ideia do que era aquele quê, que ela tinha e, que me fazia sentir não sei como.

Ali, na frente dela tomei a maior carraspana. De volta à casa levei uma surra que me colocou de cama. Por meses a fio fui alvo de troça na família até as cartinhas terem ido parar também nas mãos de um professor que as lia para a classe, que chegava a se mijar de tanto rir. O pai a tirou da escola.

Veio-me à memória o momento exato em que me prometi ficar e ouvir somente a mim mesmo. Só que o Mim Mesmo também foi um Fingidor. Maior embrulho! Ele também mente, trapaceia e finge para lá de bem. A menos que, de repente, não mais do que de repente, num lampejo, emerja do fundo da consciência a voz, a imagem e o sentimento do nosso Eu Autêntico.

Resgatei o poeta que sempre fui sem ter ousado ser. Chorei por mais de 72 horas sem parar. Cara toda inchada, olhos vermelhos de sangue, tomei coragem e liguei para um profissional que minha segunda esposa havia indicado. Contei-lhe o acontecido e a primeira pergunta que fiz foi como saber se estamos sendo autênticos para conosco? Que nos ouvimos de fato?

Aprenda a perguntar, ele disse. Agora paro por aqui. Estou de saída para a minha quarta sessão de psicoterapia e, simplesmente, gostando muito de ter com quem conversar sem precisar impressionar.

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