O legado de Michael Jackson continua bem vivo, mesmo dez anos depois de sua morte, que se deu em 25 de junho de 2009. Porém – e infelizmente –, não apenas em relação a sua arte inigualável. Um documentário recente, veiculado na HBO americana, toca de novo em uma grande ferida da biografia do cantor: os supostos abusos de crianças, uma oportunidade também para lembrarmos que pedofilia é uma doença séria – e quem a tem também sofre.

As próprias acusações, no entanto, geram dúvidas e informações desencontradas. O filme em questão, “Deixando Neverland” – alusão ao rancho que o artista possuía na Califórnia –, trata do envolvimento de Michael Jackson com dois garotos de 7 e 10 anos à época e que hoje estão na faixa dos 30/40: Wade Robson e James Safechuck.


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Exibido em duas partes, o documentário se tornou o segundo mais assistido da HBO em dez anos. Só a primeira parte, que foi ao ar em março deste ano, foi vista por 7,5 milhões de pessoas.

A produção se baseia em depoimentos de Robson e Safechuck. Os deste último, por sinal, foram bastante contestados por apresentarem certa inconsistência. Mesmo em relação a datas, uma vez que ele menciona, entre os estupros que teria sofrido, um que haveria ocorrido em Los Angeles em 1989, após a entrega de um Grammy Awards. Contudo, naquele ano, Michael estava em turnê pela Austrália, e Safechuck se encontrava nos Estados Unidos.

Além disso, na época em que surgiram as primeiras acusações contra o cantor, em 1993, James Safechuck negou veementemente que elas fossem verdadeiras. Só mais de 20 anos depois é que resolveu mudar a versão e unir-se a Wade Robson em um processo póstumo milionário.

Michael Jackson sofria de pedofilia?

Mas, no fim das contas, haveria mesmo sinais de que Michael Jackson tenha sido um pedófilo? Ou melhor – ainda que tenha cometido os abusos de que é acusado, seria possível afirmar que ele sofria de pedofilia?

Aliás, falamos mesmo de sofrimento. Afinal, o termo em questão designa uma doença. “A última edição do Manual Diagnóstico e Estatístico da Associação Psiquiátrica Americana [DSM 5] define um transtorno comportamental que denomina como transtorno pedofílico”, afirma o psiquiatra e psicoterapeuta Ivan Braun, responsável pela supervisão dos alunos de pós-graduação da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP).

De acordo com a associação americana, o quadro é caracterizado por pelo menos seis meses de fantasias sexuais excitantes, impulsos sexuais ou comportamentos intensos e recorrentes envolvendo atividade sexual com crianças ou pré-púberes, em geral de até 13 anos de idade.

São necessários ainda dois outros critérios para definir a ocorrência da pedofilia, segundo o dr. Braun. “O indivíduo coloca em prática esses impulsos sexuais ou os impulsos ou fantasias sexuais causam sofrimento intenso ou dificuldades interpessoais”, explica.

Além disso, “a pessoa precisa ter pelo menos 16 anos de idade e ser ao menos 5 anos mais velha que a criança ou as crianças, não incluindo indivíduos no final da adolescência em relacionamento sexual contínuo com pessoas de 12 ou 13 anos de idade”.

A avaliação diagnóstica da patologia precisa levar em conta, ainda, que “nem todo comportamento pedofílico constitui um transtorno pedofílico”, ressalta o psiquiatra. “Nem todos que têm fantasias com crianças ou eventualmente se relacionem sexualmente com crianças são pacientes psiquiátricos”, alerta.

“Quem tem um transtorno pedofílico apresenta uma perda de controle sobre seu próprio comportamento e necessita de tratamento, porque traz sofrimento e perigo à sociedade ou a si mesmo”, diz. “Por outro lado, pessoas que apresentam eventuais fantasias com crianças sem externá-las e sem levar sofrimento para si e para a sociedade podem não requerer nenhuma intervenção.”

Existem inclusive pessoas diagnosticadas como pedófilos que jamais molestaram crianças, acrescenta Braun. “E, se nem todos os pedófilos são molestadores, da mesma forma nem todos os molestadores são pedófilos”, conclui.

“Cerca de 50% dos abusadores são pessoas que se aproveitam sexualmente de crianças por outros motivos, como dificuldade de conseguir ou manter relacionamentos com adultos, o que está frequentemente associado a traços de personalidade antissocial, transtornos de conduta ou traços impulsivos.”

De qualquer maneira, o psiquiatra ressalta que não há formas garantidas de se diagnosticar alguém com transtorno pedofílico, a não ser com base em relatos de pessoas próximas ou do próprio paciente. “Existem alguns testes psicológicos e psicofisiológicos, como os de reações de excitação física mediante a visão de crianças, mas eles não são 100% confiáveis”, afirma.

Tratamento complicado

Se determinar se alguém sofre ou não de pedofilia já é um processo não muito simples, tratar a doença pode ser ainda mais complicado. “Acredita-se que não seja possível ‘tirar’ a preferência pedofílica da pessoa, dado que se trata de uma orientação sexual e não de uma opção”, afirma Braun.

“Certamente, só tem sentido falar em tratamento quando existe sofrimento subjetivo ou prejuízo causado em vulnerável [criança]. Nesses casos, abordagens comportamentais e cognitivas direcionadas para a identificação dos estímulos e pensamentos que aumentam a probabilidade de perda de controle e a melhora do autocontrole têm se mostrado úteis.”

Em casos mais graves, em alguns países, lembra o psiquiatra, recorre-se à supressão do efeito da testosterona, geralmente por meio da administração de hormônios femininos. “A eficácia desse tipo de procedimento não está totalmente estabelecida, pois ele pode reduzir o impulso sexual, mas não altera a preferência.”

Michael Jackson: proximidade da família

Voltando, então, a Michael Jackson. No que diz respeito ao cantor, Ivan Braun afirma existirem “vários indícios, com base nos relatos de testemunhas, de que tenha havido comportamentos pedofílicos”.

Um dos sinais disso é a proximidade do artista com as famílias das crianças de que supostamente teria abusado. “Pedófilos frequentemente se aproximam dos pais ou tutores ao mesmo tempo, ou até antes, de se aproximarem das crianças, procurando despertar um ambiente de confiança e demonstrando preocupação e carinho”, afirma o psiquiatra. “Com frequência a aproximação sexual em relação à criança é gradativa, de modo a habituá-la.”

Como prevenção ao problema, Braun sugere a pais e tutores que fiquem atentos “a quaisquer relações que envolvam permanências frequentes e prolongadas com adultos, sobretudo quando eles ficarem a sós com as crianças”. “Casos de pedofilia podem ocorrer ainda dentro das famílias”, alerta.

“Também se deve estar atento para as queixas das crianças, sem jamais minimizar o fato de expressarem aversão à companhia de algum adulto, mas sim investigar os motivos dessa aversão.” Pedofilia é uma doença séria. E precisa ser tratada como tal.

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