“Sim, minha força está na solidão. Não tenho medo nem de chuvas tempestivas nem das grandes ventanias soltas, pois eu também sou o escuro da noite.” Clarice Lispector

Uma frase de Clarice para ilustrar um poema que julguei ter sido escrito por ela. “Metades” na verdade é um poema de Oswaldo Montenegro, que acabou virando uma canção.

Para iniciar uma visão intimista a que me permito, tanto da frase de Clarice, quanto após o poema de Montenegro.

Descobri, na última década vivida, que sim, a solidão me deu força. Um ermitão numa cidade do litoral do Rio Grande do Sul. A cidade é própria para estes devaneios. Duas estações bem divididas. Inverno a cidade praticamente morre. No verão explode em festas, restaurantes e muita música.

Durante três anos me permiti saborear, não a solidão, pois essa não mais me metia medo, mas o ser solitário. Saboreava a luz matinal surgindo no pátio dos fundos de meu apartamento. Uma grande caneca de café e cigarros, meus companheiros de reflexões e filosofias. Estas eram as preferidas horas de repassar pendências que todo ser humano tem durante a existência. Uma família desfeita, um filho, as mortes e os nascimentos. Tudo pode ser analisado e entendido quando só se tem como companhia a própria sombra. E como as entendi, as pendências quero dizer. O fato de uma desunião com um dos filhos, nunca descoberta durante a convivência. Perceber que o que me afastava dele era por reconhecer que ele era um espelho vivo de mim na juventude. A timidez, uma característica muito forte, que me penalizou durante aquela época, era uma característica também dele. Descoberta a razão, mas não definido o perdão, pois ele faleceu antes desta compreensão existir. Assim outros senões foram sendo repassados, analisados e devidamente guardados num escaninho como fatos resolvidos e apaziguados.

O dia então ia se adiantando, transformando-se em manhãs silenciosas como só ser uma cidade fantasma.

Sentava-me então em frente ao teclado. Conversas virtuais explodiam em minha tela. Mulheres geralmente. Não por só procura-las, mas porque eram melhores entendidas. Após, voltava a me recolher. E aí surgiam crônicas, alguns poemas falhos, pois poeta não o sou. As crônicas, às vezes em forma de prosa, que as tornam parecidas com poemas. Mas não consigo admitir-me poeta. Este era meu irmão, distante de mim por trinta anos em que residi no RS. Visitas anuais não permitiram um conhecimento maior, pelo menos da parte dele. Mas isto é outra história.

Aprendi a apreciar as tempestades. E como as há no sul. Beira mar, ventos, o Minuano famoso e o granizo. Lindos e cruéis, infelizmente. Acordei um dia e vi ao longo do muro do pátio montes de gelo com uns vinte a trinta centímetros de altura. Fiquei entorpecido pelo poder da natureza. Não somos conhecedores de naturezas invernais. Os ventos, cantando cantigas pelas fímbrias das janelas embalavam meu sono solitário em minha larga cama de casal. Paz. E liberdade. Dormir ao porvir, acordar ao meio da tarde, sair de madrugada e voltar ao raiar do dia. Olhar na tela da TV, único, porém devidamente degustado, a que me permitia o programa que queria, na hora que queria. Fazia comida se tinha fome. Se a preguiça batia comprava algo para beliscar e era o suficiente. Havia caminhadas em horas tradicionais. Era reconhecido por muitos da cidade. E sempre rolavam alguns dedos de prosa. Distraia-me com o papo. Almoçava em alguns dos poucos restaurantes que permaneciam abertos no período invernal. Sempre só. Frequentava um café quase todas as manhãs. Lugar agradável, com uma pérgola de primaveras rosa. A natureza fazia que as pequenas aves sentassem em minha mesa, e beliscassem as migalhas do lanche que fazia. Estranho. Elas também não tinham medo. Talvez por perceberem que eu também ali estava em paz. Enfim, um mundo a ser explorado. Dentro e fora de mim. E nas profundezas que, infelizmente não consegui terminar, ficaram os rescaldos que procuro hoje entender. E na pauta de outro contista, atrevo-me a caminhar os mesmos versos.

“Que a força do medo que tenho/ não me impeça de ver o que anseio/ que a morte de tudo em que acredito/ não me tape os ouvidos e a boca/ pois metade de mim é o que eu grito/ mas a outra metade é silêncio”.

Vencido o medo como dito, nada impede que veja o que anseio, pois a morte já foi por mim reconhecida e não me fez desacreditar da vida. Ao contrário do poeta metade de mim silencia, e a outra metade me lança ao infinito.

“Que a música que ouço ao longe/ seja linda ainda que tristeza/ que a mulher que eu amo seja pra sempre amada/ mesmo que distante/ porque metade de mim é partida/ mas a outra metade é saudade”.

A música ao longe, se tristeza, faz que a inspiração surja, pois o dom de escrever se aprimora, quando a alma esta ensombrecida. A mulher que amo tem várias faces, cada uma amada de uma forma. E a cada partida só resta a minha metade, e a outra metade é jornada.

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